Haja Vista https://hajavista.blogfolha.uol.com.br Histórias de um repórter com baixa visão Tue, 07 Dec 2021 17:23:21 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Por que se acredita que lidar com pessoas com deficiência é mais difícil do que com as demais? https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/268/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/268/#respond Sun, 27 Jun 2021 17:26:41 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Homem-com-bengala-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=268 Existem frases que nós que temos uma deficiência ouvimos o tempo todo sem notar o quanto elas seriam incomuns, na verdade grosseiras, se fossem dirigidas para outros.

Não me refiro aos questionamentos diários sobre de onde vem nossa deficiência, se foi por doença ou acidente, se a gente não enxerga nadinha de nada mesmo, se sonha de noite ou como sabe se alguém é bonito sem ver.

São inúmeras as perguntas curiosas que, a depender de como e quando são feitas e também de quem as responde, podem ser entendidas como naturais e saudáveis ou como invasivas e irritantes. Infelizmente não tenho receita ou manual de instruções sobre como conversar com um cego.

Há poucos dias descobri que muito mais significados estão escondidos em uma fala tão frequente quanto as anteriores e que tem como propósito demonstrar empatia, vontade de aprender com o outro e construir laços.

Quantas vezes, caro leitor, alguém lhe disse que iria se esforçar para aprender a lidar com você?

Se você tem uma deficiência, provavelmente uma centena de vezes. Ouviu coisas assim quando foi se matricular em um curso, passou por uma entrevista de emprego, foi a uma agência de viagens, marcou um encontro num aplicativo de namoro. Isso se tiver dado sorte, pois também há risco de terem dito que não saberiam como agir na situação e fechado a porta, sugerindo que procurasse um especialista em pessoas como você.

Por outro lado, caso não conviva com uma deficiência, apostaria que nunca escutou nada parecido. Mais do que isso, ficaria muito ofendido se alguém tentasse demonstrar simpatia dessa forma, seja você homem ou mulher, rico ou pobre, negro ou branco, jovem ou velho. Dirá, todos precisam me aceitar assim como sou e saber me tratar como um igual não é mais do que a obrigação de qualquer pessoa.

Por que as pessoas com deficiência formam um grupo sobre o qual se pode admitir com tranquilidade que não se sabe lidar, enquanto os demais são entendidos como consumidores, profissionais, alunos, amigos, e companheiros em potencial?

A exclusão que as pessoas com deficiência sempre vivenciaram na educação, na vida social e no trabalho nos levou a uma situação em que nós e as pessoas mais bem intencionadas, dispostas a iniciar uma relação conosco, nem percebem o quanto é sintomático aceitarmos que ainda estamos tão distantes que, não havendo um esforço para que aprendamos uns com os outros, nossas deficiências serão uma muralha intransponível para que haja alguma troca entre nós.

Há especificidades no modo como nós que temos uma deficiência nos comunicamos, aprendemos, nos locomovemos, nos divertimos. A maioria das pessoas não sabe muito a respeito e realmente pode ser preciso que se aprenda algo no primeiro contato, que haja um aviso de que a forma certa de conduzir é deixando o cego segurar no cotovelo de quem está indicando o caminho.  E estamos o tempo todo torcendo para encontrar pessoas receptivas a nosso modo de ser.

Mas porque conviver com alguém com deficiência é visto com frequência como um gesto humanitário de algumas pessoas de bom coração e não algo que deveria ser natural para todos? Penso que seria muito melhor um mundo em que as pessoas conhecessem e abraçassem essas diferenças, se compreendessem e convivessem com naturalidade.

Em vez disso, o cego que chega a um novo espaço costuma ser a novidade que desestabiliza. É a pessoa que ninguém tinha se preparado para receber na festa, para quem vão procurar uma cadeira no cantinho em vez de chamar para a pista. Até que um dia vem alguém disposto a aprender a lidar com a gente, a ensinar os passos da dança de mãos dadas, e ficamos imensamente gratos por terem se lembrado de nós pelo tempo que dura uma música.

Quando o humor está melhor, olho a questão de cabeça para baixo. Uma vez uma pessoa da família decidiu que iria assumir o milenar trabalho do Cupido e encontrar uma namorada para mim. A primeira qualidade que enumerou sobre a pretendente imaginária é que a moça não deveria ter preconceito. Ótimo. Então a deficiência é um repelente natural de gente preconceituosa.  Um grande privilégio, eu diria.

Só me pergunto o motivo de as pessoas que não tem deficiência aceitarem se relacionar com alguém intolerante, que não consegue se imaginar convivendo com o diferente. Acordar de manhã ao lado de quem possui uma visão de mundo tão pobre me parece infinitas vezes mais difícil do que estar com alguém que não enxerga.

Pensando bem, tem milhares de coisas que podem ser mais difíceis de lidar do que a cegueira. Imagina como seria lidar com alguém desonesto? Eu precisaria de muita meditação e empatia para me adaptar a isso.

Como vocês fazem para lidar com pessoas que se acham superiores às demais? Como lidam com quem é uma enciclopédia de verdades aprendidas no WhatsApp?

Tem gente que tem muita facilidade para lidar com quem fala sem parar. Para mim é ótimo, prefiro muito ficar só escutando, o que é um grande desafio para os mais calados.

Como a gente lida com a pessoa que está sempre com os sentimentos à flor da pele, caminha na rua com o cachorro como se fosse a experiência mais transcendental que se pode viver em um dia de inverno e faz todas as ações de quem está a sua volta parecerem medíocres? como se faz para lidar com a pessoa que se desencantou com a vida e só quer ficar em silêncio no seu canto? Quem pode me dar uma ajuda para me relacionar com pessoas muito cultas que intimidam por sua inteligência?

Parece que toda essa turma também veio sem receita ou manual de instrução. Não será fácil, mas prometo me esforçar bastante para aprender a lidar com todos vocês. Tenham paciência e me avisem se eu fizer algo errado. E já antecipo as desculpas pela minha falta de experiência.

]]>
0
Escola inclusiva ensina que há mais semelhanças do que diferenças https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/13/escola-inclusiva-ensina-que-ha-mais-semelhancas-do-que-diferencas/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/13/escola-inclusiva-ensina-que-ha-mais-semelhancas-do-que-diferencas/#respond Tue, 13 Oct 2020 11:10:07 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Escola-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=62 O Bruno é um dos meus melhores e mais antigos amigos, daqueles que se tem uma história compartilhada. A gente se conheceu quando eu tinha oito anos e passei a estudar no Colégio Friburgo. Frequentava a casa dele e conhecíamos a família um do outro. A intimidade e o carinho são tão grandes que, sempre que nos encontramos, ele me dá um abraço e diz: “Continua ficando cada dia mais feio”!

Muitos anos depois de nos formarmos na escola e na faculdade, fomos comer empanadas perto de casa. Ele me contava de seu curso de pós-graduação. Em uma conversa que teve por lá, o assunto foi parar na inclusão de pessoas com deficiência na escola. E, me contava o Bruno, ele não se lembrou que teria muito a dizer sobre o assunto, por ter convivido tanto tempo comigo. Só mais tarde se deu conta que, vejam só, ele teve um amiguinho com deficiência na mesma classe por dez anos.

Nunca foi segredo na escola que eu tinha uma limitação visual. Na terceira série, quando fui para Cuba fazer um tratamento alternativo para os olhos e operei a retina, todo mundo sabia o motivo de eu ter faltado algumas semanas. Meus amigos entendiam que eu precisava sentar na primeira fila, não era bom no futebol e minha visão era praticamente zero de noite ou no teatro, onde o ambiente era mais escuro, por causa de uma doença nos olhos.

Algumas histórias minhas relacionadas a não enxergar bem eram conhecidas e repetidas entre os colegas, como meu hábito de pisar em todas as poças d’água nos dias de chuva, molhando a todos ou a vez em que, na saída de um passeio no shopping, abri a porta do carro errado pensando que fosse o do meu pai e fiz a motorista gritar assustada, achando que fosse um assalto.

No último ano do colegial, a turma foi para Bariloche. Sem ninguém precisar combinar nada, a cada momento um colega vinha para me guiar pelas ruas das cidades, pelas pistas de dança ou pelas montanhas cheias de neve. Comecei a prestar atenção nesse troca-troca e percebi que, ao final daqueles dias, todos da turma haviam me conduzido em alguma situação. Agradeci a todos por isso quando nosso professor de filosofia, o Emílio, ligou uma câmera e pediu que cada um lembrasse do fato mais marcante nos tempos de colégio.

Fiquei pensando, como é possível, então, que o Bruno não tenha notado nada em meio há tantos sinais de que vivíamos uma experiência progressista de inclusão, que agora entrou em debate após edição de um decreto com a nova Política Nacional de Educação Especial.

 

Meu palpite é que ninguém avisou, nem a mim e nem ao Bruno, que eu era tão diferente assim. Ou o que explica o susto que a Soninha tomou quando viu que eu seria o próximo da fila na brincadeira dos meninos, não autorizada, de enfileirar vários caixotes para um salto à distância, com um bom risco de cair de cara no chão? Uma pena, eu até hoje penso que iria conseguir passar pelos obstáculos, caso ela não desmanchasse a diversão.

Se a escola tivesse ensinado a mim e a meus amigos que eu era uma pessoa com deficiência que precisava ser protegida para não sofrer nenhum arranhão, será que eu teria saltado num lago de uma plataforma a cinco metros de altura em nossa viagem para Bonito? Teria feito tantas trilhas lá na Serra do Japi? Será que iria participar da brincadeira do montinho, quando derrubávamos uma pessoa no chão e todos iam se deitando por cima sem delicadeza alguma? Teria tomado um porre numa balada em Bariloche que fez o Alessandro ter de me levar abraçado para que eu não caísse até a Vera, professora de química, enquanto eu sofria com um ataque de riso que parece ter durado horas?

Tenho a impressão de que, na virada dos anos 1990 para os anos 2000, não se falava muito em inclusão. Ao menos eu não conhecia a palavra. Mas, no meu caso, ela aconteceu tão bem que nem percebemos o quanto todos aprenderam. Tenho certeza de que quem esteve comigo no Friburgo jamais vai pensar que ter uma dificuldade visual faz a pessoa ser muito diferente. Sabem que quem enxerga pouco é igualzinho aos outros e faz de tudo. Pode até ser o melhor da classe em história (posição que eu dividia com o Bruno) e em português. A única coisa é que de vez em quando precisa de uma mão para encontrar o caminho.

Os anos que passei no colégio foram os melhores da minha vida, eu era muito feliz ali e sabia. Mas a história poderia ter sido outra. Logo após meu diagnóstico, houve uma conversa de meus pais com a direção da escola sobre a conveniência de me transferirem para uma instituição especial para cegos. Pelo que me contaram, a conversa terminou com a diretora dizendo que eu só sairia de lá formado.

A bem da verdade, não fui um aluno que trouxesse muitas dificuldades para meus professores. Minha visão diminuiu mais devagar do que o previsto e não precisei aprender braille naquela época, o que simplificou as coisas para a escola, já que eu usava o mesmo material que todos os colegas. Mas a determinação do colégio de me aceitar ali, não importando o que acontecesse, é muito diferente de histórias que conheço de pessoas cegas próximas a mim que tiveram matrículas rejeitadas naquela época porque, diziam as escolas, faltariam ali recursos adequados para atender bem o “aluno especial”.

Por outro lado, só passei a conviver com alguém com deficiência visual anos mais tarde, quando estava terminando a faculdade. Penso que teria sido legal ter amigos para jogar futebol de olhos vendados ou disputar um torneio de xadrez no escuro, coisas que ainda não fiz. Todos têm muito a aprender vivenciando a diversidade, inclusive eu.

Se os adultos deixarem de lado os preconceitos e fornecerem as condições adequadas, sejam elas material em braille, intérpretes de Libras ou caminhos acessíveis e professores dispostos a buscar melhores formas de ensinar, as crianças cuidarão de brincar e aprender umas com as outras.

 

Acompanhe os posts também pelo Twitter.

]]>
0