Haja Vista https://hajavista.blogfolha.uol.com.br Histórias de um repórter com baixa visão Tue, 07 Dec 2021 17:23:21 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Não faz sentido usar pessoa com deficiência visual para atacar linguagem neutra https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/06/17/nao-faz-sentido-usar-pessoa-com-deficiencia-visual-para-atacar-linguagem-neutra/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/06/17/nao-faz-sentido-usar-pessoa-com-deficiencia-visual-para-atacar-linguagem-neutra/#respond Thu, 17 Jun 2021 21:53:07 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Foto-Braille-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=263 É comum eu receber de amigos preocupados com inclusão perguntas sobre o que acontece quando leio um texto que adotou a linguagem neutra para evitar marcadores de gênero.

Em geral, eles querem saber o que entendo quando escrevem algo como “amigxs” ou “Todxs”.  Ou melhor, o que os softwares que fazem a leitura do texto para mim, com uma voz sintetizada e robótica dizem quando se deparam com essas inovações linguísticas.

Será que, ao tentarem ser mais inclusivos, quem escreve assim estaria deixando de fora o grupo das pessoas com deficiência visual, que passaria a se perder em uma mensagem indecifrável?

A pergunta merece reflexão, ainda mais porque pessoas com deficiência visual são com frequência citadas como grandes prejudicadas por críticos desse tipo de linguagem, como o fez o empresário Gabriel Kanner em sua coluna.

Cabe ressaltar que, ao contrário do que escreve o empresário, o sistema braile para leitura tátil não traz dificuldade alguma para registrou ou compreensão de uma letra “x” entre duas consoantes.

Na verdade, é possível escrever textos, equações matemáticas ou partituras musicais de imensa complexidade a partir do braile e uma pessoa alfabetizada entenderá o que está escrito sem diferença significativa em relação a quem enxerga.

Já os softwares leitores de tela, que não foram citados por Kanner e são uma inovação fundamental para a inclusão de pessoas com deficiência visual pelo volume imenso de informações a que dão acesso, nem sempre são perfeitos na transmissão da mensagem escrita.

Esses sistemas, que leem tudo o que aparece no monitor ou no celular e orientam a navegação do usuário entre links, pastas e abas, não sabem muito bem o que fazer quando encontram coisas como IBGE, ICMS, BNDES ou iFood, para citar termos da cobertura econômica com os quais me deparo todos os dias.

A leitura dos robôs faz o que pode para transformar esses nomes e siglas em uma palavra só em português, em vez de ler letra a letra ou passar para o idioma em que está escrito. Daí que eu tenha de estar muito atento para não decorar coisas erradas e passar a falar barbaridades como “Ibigi”, “Iquisme”, “Binidis” ou “ifud” (em vez de aifud). A assistente virtual da Amazon, Alexa (diz-se “Alecsa”), para mim foi “Alecha” por muito tempo.

Acontece que a pessoa que usa leitor de tela todos os dias sabe de suas imperfeições e, de verdade, não precisa ficar  pensando nisso o tempo todo para entender de que se está falando. Caso tenha alguma dúvida, é plenamente possível navegar pelo texto linha a linha e letra por letra para soletrar a palavra e entender o que está acontecendo.

Nosso cérebro se acostuma a fazer essas pequenas correções no texto automaticamente e em velocidade extremamente rápida. Fique do lado de um programador cego enquanto ele usa o computador para entender do que estou falando. Pensando bem, provavelmente você não entenderá uma só palavra que o leitor de tela dele dirá, tamanha a quantidade de fonemas emitidos por segundo.

Claro que é mais adequado ouvir um texto em que as palavras são bem ditas e a compreensão é mais natural. Também é de se esperar que os leitores de tela estejam sempre evoluindo e aprendendo a fazer antecipadamente os ajustes que nós realizamos na mente , conforme se amplia o dicionário de palavras e suas pronúncias armazenadas em seus arquivos. Já é comum que eles saibam que é preciso ler “spotifai” em vez de “spotifi” quando estou sobre o nome do serviço de streaming, por exemplo.

Quanto à linguagem neutra, minha opinião como ouvinte de leitor de telas é que “Amigues” e “Todes”  soam muito melhor e têm resultado parecido, só que menos esquisito, do que suas variações com “X”, apesar de manterem bastante parentesco.

Mais importante é que, nos dois casos, nenhum cego que conhece o tema vai ficar em dúvida sobre do que está se falando e toda a carga ideológica associada. Pessoas com deficiência visual estão totalmente preparadas para decidir se a enxergam como acolhedora, como um modismo irritante ou ainda uma doutrinação perversa.

Se a preocupação é com as pessoas com deficiência visual, fiquem tranquilos. Estamos participando dessa conversa e temos nossas opiniões sobre fonética e questões de gênero. Obrigado por terem se lembrado de nós e, da próxima vez que servirmos de argumento, podem perguntar primeiro, isso não nos ofende.

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Gerenciamento de WhatsApp é a habilidade do futuro https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/12/07/regras-de-boa-convivencia-no-whatsapp/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/12/07/regras-de-boa-convivencia-no-whatsapp/#respond Mon, 07 Dec 2020 12:00:06 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/Foto-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=109 Uma habilidade que passou a ser exigida do jornalista com o avanço tecnológico é o gerenciamento eficiente de WhatsApp. A cada dia, o contato com fontes e colegas por email e ligação telefônica perde um pouco de espaço e o volume de mensagens, importantes ou não, cresce exponencialmente.

Muitas pessoas, quando ficam sabendo que tenho deficiência visual, passam a enviar mensagens de áudio. Pode até ser bom quando a intenção é bater papo com calma, mas não precisa e não é uma boa ideia se o assunto for urgente, pois provavelmente eu vou deixar as gravações para o final da fila. Isso porque os celulares tem um sistema leitor de tela que passa para mim em alta velocidade tudo o que está escrito, inclusive figurinhas. Se estou com ele ligado e na mão, a notificação aparece e é lida na hora.

Minha solução para dar conta de todos os recados antes da hora do fechamento é usar um pequeno teclado sem fio que se conecta ao celular para conseguir responder a todos rapidamente. Os dias em que por algum acaso esqueci de levá-lo para o trabalho trouxeram sensação parecida com a daqueles sonhos nos quais saio de casa e só percebo que estou de pijamas quando chego no trabalho.

Mas trabalhar com o aplicativo dessa forma tem suas diferenças. Por isso a pergunta que minha chefe me fez noutro dia é muito boa. Ela queria saber se, para mim, seria melhor receber mensagens longas ou curtas.

Eu ainda não tinha uma resposta pronta para isso. É certo que me causa terror quando alguém começa a enviar uma sequência com meia dúzia de mensagens curtas de uma só vez. O apito do celular já me coloca a imaginar qual foi o desastre que aconteceu ou o que será que eu fiz de errado dessa vez para alguém me procurar com tanta urgência. Na maioria das vezes, não é nada. A primeira diz “Oi, Filipe”, a segunda diz, “Boa tarde”, a terceira “te enviei um email agora” e a quarta “Você confirma que chegou?”.

Isso me faz pensar que textos longos são melhores. Acontece que, caso o redator exagere, também há desvantagens. Isso porque, ao menos no WhatsApp, só consigo acessar a mensagem do começo ao fim. Se chega alguma outra notificação qualquer enquanto o sistema que lê para mim está no último de sete parágrafos, já era, será preciso começar tudo outra vez.

Acontece todos os dias. Eu estou ali, querendo saber o final da história, até que o aparelho começa a apitar: “Oi, Filipe”, “Tudo bem?”. Começo de novo. Acelero a voz artificial para que chegou no final mais rápido. Voltei ao mesmo ponto e…”Está um dia bonito né?”. Suspiro.”

Há uma gambiarra para lidar com a situação. O que faço é copiar o texto todo de uma vez e colar num bloco de notas, assim posso ler aos poucos, descendo linha por linha com ajuda do teclado. Preciso fazer isso com tanta frequência que estou com mais de 300 notas que foram criadas dessa forma e não apaguei.

Para tentar evitar os dois problemas, minha proposta para uma etiqueta cibernética para não enlouquecer seu amigo que tem deficiência visual é usar o caminho do meio. Mensagens próximas a um tuíte de 140 caracteres estão de bom tamanho. Mais do que isso, melhor dar uma picotada. Mas deixa o “oi, tudo bem” junto com a primeira mensagem e o “obrigado, tchau”, junto com a última, por favor. Minha pressão arterial agradece.

Se o aplicativo já é fonte de adrenalina quando a conversa é com uma pessoa por vez, tentar acompanhar uma série de grupos simultâneos é uma montanha-russa cheia de loopings que anda de frente para trás.

Ali, além de ler o conteúdo de cada pequena mensagem, meu fiel leitor de telas fala o nome de quem mandou cada uma delas. Então, a cada “oi”, “tudo bem”, “hahaha”, ou “kkkk” de um participante do grupo, escuto antes a frase “mensagem de fulano”. Quando a conversa está frenética, com todos falando ao mesmo tempo, é inevitável que eu tenha de correr saltando barreiras para não ficar atrasado no assunto, com tanta “mensagem de amigo X”, rsrsrs” para ultrapassar..

Claro que o WhatsApp faz bem ao avisar quem escreveu o quê. A acessibilidade no aplicativo é boa, não imagino solução melhor. Minha única sugestão mesmo é acabar com isso tudo e voltarmos às comunidades do Orkut.

Sinto ainda mais culpa por não conseguir interagir bem em grupos formados principalmente por pessoas com deficiência visual. Ali, o que rola solto mesmo são as mensagens de áudio. Quando volto lá após um tempo, tem mais de hora de conteúdo me esperando. Desisto antes de começar.

Pois é, amigos, não é nada particular, mas já planejo meu detox virtual para o final do ano. Não aguardem respostas rápidas para suas mensagens, mas ficarei feliz em receber um telefonema de Natal.

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Empresa envia email a milhões de clientes, mas só cegos conseguem ler https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/empresa-envia-email-a-milhoes-de-clientes-mas-so-cegos-conseguem-ler/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/empresa-envia-email-a-milhoes-de-clientes-mas-so-cegos-conseguem-ler/#respond Thu, 15 Oct 2020 12:00:16 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/image004-300x215.png https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=76 A empresa de mobilidade Cabify está colocando hoje seus usuários e motoristas que enxergam em uma situação muito comum a pessoas com deficiência visual: Eles vão receber um email que, a princípio,  não conseguirão ler. Mas quem não enxerga acessará o conteúdo com facilidade.

Milhões de pessoas receberão nesta quarta (15) uma mensagem que parecerá em branco. Só quem usa softwares para leitura de tela, que apresentam o texto que está no computador ou no celular por meio de uma voz artificial, saberá o que ela diz.

Em seguida, a empresa explicará em um segundo email que não houve engano. Caso o cliente queira ler o que está na mensagem anterior, terá que ligar o leitor de tela do seu celular, seguindo instruções enviadas pela companhia.

A intenção, diz a Cabify  em nota, é fazer com que as pessoas que enxergam sintam como é ser cego. Ao mesmo tempo,  quem tem deficiência visual irá receber uma mensagem exclusiva.

Os emails impossíveis de serem acessados são rotina na vida de quem não enxerga. Em geral, o problema acontece por desconhecimento sobre como funcionam os sistemas que nos permitem ouvir as informações que vieram online. O texto que está no corpo do email é acessado com facilidade pelos softwares que cegos usam, mas o que aparece escrito em uma imagem, não.

Ou seja, emails vazios,  a não ser por uma foto com o convite para um evento com data, local e horário dentro dela, para um cego, será um email vazio. E, para mim, coisas assim chegam quase todos os dias.

O que a mensagem escondida da Cabify revela é que os problemas de comunicação não estão relacionados à falta de visão. O que é preciso é pensar em todas as pessoas que irão receber as informações. É possível, inclusive, falar só com quem não enxerga e excluir os demais.

A ação da Cabify, chamada “Email Invisível”, marca o Dia Mundial da Bengala Branca. A empresa usará a data para anunciar novas funções de acessibilidade no aplicativo, entre elas um menu para que o usuário indique suas necessidades e novos formatos de informações para o motorista. A companhia também promete que irá treinar todos os seus desenvolvedores em acessibilidade.

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Conheça a Luciana, a voz que não sai do ouvido dos cegos https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/09/23/conheca-a-luciana-a-voz-que-nao-sai-dos-ouvidos-dos-cegos/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/09/23/conheca-a-luciana-a-voz-que-nao-sai-dos-ouvidos-dos-cegos/#respond Wed, 23 Sep 2020 10:45:30 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/Foto-leitor-de-tela-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=23 Pense nestes últimos meses em que os encontros foram raros e lembre com ternura daquele dia em que você sorriu quando alguém te surpreendeu com uma mensagem inesperada que encheu o coração, ou da noite em que recebeu um convite para uma festa de aniversário pelo Zoom que alegrou uma sexta-feira vazia.
Fique sabendo que essas demonstrações de afeto são ínfimas se comparadas ao que a Luciana é para mim.

Ela é a voz que me acompanha do nascer do dia até o sono me alcançar. Sua fala doce e apressada é o som que mais escuto todos os dias. Ouso dizer, se não fosse por sua ajuda, este texto nem existiria.

Ao acordar, ainda na cama, as primeiras palavras que escuto todas as manhãs  vêm dela. Enquanto tento descobrir em que dia estamos, Luciana me conta quais as manchetes do jornal. Nos aprofundamos em alguns textos durante o café, até que decido que é hora de relaxar e navegamos juntos em um aplicativo de música. Ainda bem que ela tem paciência para ler e reler o nome dos discos e faixas até eu descobrir o que quero.

Quando, com minha bengala, vou para a redação, Luciana pega o metrô comigo. Paciente, lê no meu ouvido os emails que chegaram desde a noite anterior para me preparar para os desafios que virão. Depois escolhemos um livro para compartilhar no resto do caminho. Pode ser a Bíblia, Dostoiévski  ou Bruna Surfistinha, ela conta tudo com leveza e discrição e sem nenhum julgamento.

Chego no jornal e converso com os colegas. Mas não consigo ficar muito tempo longe dela. Logo estamos juntos procurando pautas, ela me soletrando o que quero escrever. Ainda bem que minha amiga não é avarenta e nunca pediu para ficar com parte do salário, pois mereceria.

Claro que não acredito em perfeição nos relacionamentos e, neste caso, não é diferente.  O que tenho com a Luciana poderia ser descrito como uma via de mão única. Ao mesmo tempo em que ela fala tanto, não serve para confidente, nunca me escuta. E o que sei sobre ela? Nunca a vi nem toquei nem a ponta de seus dedos, não conheço seus medos e desejos, amores e frustrações.

Como homenagem a esta amizade, o melhor que posso fazer é explicar de onde ela veio e como outros podem encontrar uma companhia como essa.

Luciana e vozes tão legais como a dela estão na maioria dos smartphones. Se você a chamar, ligando o VoiceOver nos aparelhos da apple ou o TalkBack, nos celulares com sistema Android, sua nova amiga vai passar a ler tudo o que está na tela. Tome cuidado, isso muda toda a configuração de uso do aparelho e você pode se atrapalhar até conseguir fazê-la ficar quietinha novamente.

Com a Luciana lendo, quem não enxerga pode fazer de tudo no celular, se divertir e informar com livros eletrônicos, usar o WhatsApp, GPS, as redes sociais e aplicativos de transporte. Ela ajuda inclusive a acertar a mira na hora de digitar naquelas letrinhas miudinhas. Por enquanto, não consegue achar textos em imagens, então, quando for mandar fotos para alguém com deficiência visual, descreva o que está enviando, inclusive os textos. As carinhas, ou emojis, não precisam ser explicadas, ela já as entende e conta se há um rosto sorrindo ou um rosto piscando o olho e mostrando a língua, com essas palavras mesmo.

Leitores de tela também são usados para que pessoas com deficiência visual escrevam e leiam no computador. Sim, é comum decorar o teclado quando não se enxerga, mas isso não basta. A Luciana me repete cada letra que eu digito. Depois posso pedir que soletre, leia linha por linha ou o texto inteiro de uma vez para saber se está tudo no lugar certo. Eu já disse que ela é muito dedicada?

Agora vou contar uma fofoca, espero que Luciana não leia. Apesar de todo seu empenho, ela não sabe me ajudar muito bem com ortografia. Se alguém escreve casa ou caza, cachorro ou caxorro, ela lê tudo igualzinho. Quem não está lendo com os olhos precisa ter muita atenção para não ouvir latidos do leitor depois, caso haja um deslize. Felismente iço numca acontesseu  aki.

#PraCegoVer Leia a última frase com seu leitor de tela soletrando letra por letra.

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