Haja Vista https://hajavista.blogfolha.uol.com.br Histórias de um repórter com baixa visão Tue, 07 Dec 2021 17:23:21 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Exclusão de pessoas com deficiência na cultura não deveria ser tratada com naturalidade https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/10/24/exclusao-de-pessoas-com-deficiencia-na-cultura-nao-deveria-ser-tratada-com-naturalidade/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/10/24/exclusao-de-pessoas-com-deficiencia-na-cultura-nao-deveria-ser-tratada-com-naturalidade/#respond Sun, 24 Oct 2021 17:09:14 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Foto-Braille-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=312 Para cegos ou quem tem baixa visão, a notícia de um novo filme, série, peça de teatro ou livro sempre vem acompanhada de uma dúvida: será que foi feito para mim também?

A questão não é sobre se vai passar no streaming que a pessoa assina ou em alguma plataforma que ainda busca conquistar espaço na fatura de seu cartão de crédito. Acontece que ficamos pensando se desta vez nos será dado o direito de ter acesso ao que os demais clientes do serviço podem ver.

Experimente falar para um cego sobre algo muito bom que você assistiu recentemente. Provavelmente você vai logo ouvir algo como: “Vou pesquisar para ver se tem audiodescrição”. Esse é um recurso usado para, a partir da adição de uma locução nos momentos em que não há diálogo, informar aos espectadores com deficiência elementos fundamentais do cenário, fisionomia de personagens e ações. Em muitos casos, é o que faz a diferença entre não entender nada ao assistir um filme ou poder aproveitá-lo como qualquer pessoa.

Em uma conversa recente com uma pessoa que acabava de conhecer pela internet, fui perguntado sobre que tipo de filme eu gosto de assistir. Fiquei meio constrangido, meio com preguiça de ter de explicar que qualquer um que tenha acessibilidade estava bom. Improvisei um “sou eclético”, falei um conjunto meio sem nexo de coisas que tinha visto nos últimos meses  que ia de animações infantis a filmes policiais, e, claro, o papo não durou muito.

A gente se acostuma com isso, a poder assistir só uma parte do que passa nos cinemas, na televisão e nos palcos. E ainda por cima ficamos mais gratos quando o recurso é oferecido do que indignados com a falta dele na maioria dos casos.

Nesse contexto em que ficarmos de fora é o padrão, o resultado é que o repertório cultural das pessoas com deficiência fica defasado. Traduzindo para uma linguagem mais para Friends do que para filme iraniano na mostra de cinema, não participamos das discussões do momento. E falo de Friends, que estreou nos anos 1990, quando eu enxergava bem mais, porque não sei bem quais as séries de comédia atuais.

O questionamento sobre se fomos lembrados se repete o tempo todo. Saiu um novo aplicativo, será que foi construído de modo que um cego consegue usar? Preciso preencher um formulário online, será que os campos estão acessíveis? Gostaria de visitar um museu, será que há alguma descrição dos quadros e orientação para aproveitar a exposição? E o que pensar da quantidade cada vez maior de imagens com informações nas redes sociais que não possuem uma descrição de seu conteúdo e, portanto, não foram publicadas lembrando de nós?

O cenário ainda é bastante desfavorável, mas há evoluções. A maior delas está no acesso a livros. Próximos dias sai um novo do Chico Buarque e não tenho dúvidas de que haverá uma versão digital que poderei ler em algum aplicativo, com apoio do software leitor de tela que roda no aparelho.

Essa segurança existe nos sucessos de vendas. Já quando se precisa de um livro mais especializado, acadêmico, as chances diminuem sensivelmente. E pode ser que, ao escrever para a editora dizendo que é lei haver uma versão acessível da obra, receba apenas uma resposta sucinta dizendo que o livro só é oferecido em formato físico.

De vez em quando a gente dá um jeito de entrar pelas portas dos fundos, quando há um pouquinho de piso tátil  por lá. Consegue um amigo que esteja disponível para assistir junto a um filme e explicar o que não deu para entender só pelo som, escaneia livros página a página e tenta decifrar as letras que não foram captadas pelo aparelho, encontra na internet circulando clandestinamente uma cópia digital da obra, encontra um site com filmes sem imagens e com descrições. E nos achamos o máximo por estarmos driblando o sistema excludente, em vez de nos irritarmos por precisarmos fazer essas manobras.

Falando em coisas boas, também há iniciativas que surpreendem e enchem de esperança ao mostrar que é possível incluir mesmo que você não seja executivo de um grande estúdio ou de uma plataforma bilionária de streaming.

Minha amiga luiza gianesella lançou neste ano seu livro de estreia, entremarés.

Além da versão impressa, seus poemas estão disponíveis em áudio, na voz da própria autora, no Spotify.

Mais do que isso. Ela teve o cuidado de procurar soluções próprias para a versão falada de sua poesia que permitissem traduzir efeitos gráficos adotados na escrita. Vale trabalhar com tridimensionalidade no som, sobrepor gravações da voz falando palavras diferentes ao mesmo tempo e soletrar palavras para sublinhar sentidos múltiplos revelados pela grafia. A ideia não foi minha, mas ouvi alguns desses experimentos criativos antes do lançamento para opinar se funcionavam e já começamos a estudar ideias futuras.

Inclusão de verdade é assim, envolve respeito, dedicação e arte.

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Artista inquieta, Sara Bentes prepara livro, CD e musical durante a quarentena https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/artista-inquieta-sara-bentes-prepara-livro-cd-e-musical-durante-a-quarentena/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/03/28/artista-inquieta-sara-bentes-prepara-livro-cd-e-musical-durante-a-quarentena/#respond Sun, 28 Mar 2021 14:30:35 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/Foto-sara-300x215.jpeg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=208 Uma aula de canto de Sara Bentes, 38, pode ser interrompida por uma ideia. Quando acontece, ela pede um minuto de licença ao aluno para pegar o gravador e registra algumas palavras que entrarão na história que vem escrevendo. Também acontece no ônibus. Muitas vezes é necessário registrar notas musicais sussurrando baixinho para o aparelho ligado para não perder uma nova melodia que acabou de chegar.

“É preciso muita meditação pra acalmar essa mente que não para quieta”, diz a artista, que circula entre música, teatro, literatura, dança e circo. Ela conta que novas ideias estão aparecendo o tempo todo e vão ficando guardadas para serem trabalhadas depois.

O livro Lauren, que ela publicou em 2018, por exemplo, teve os principais trechos do roteiro concebidos no caminho entre Volta Redonda, onde morava, e São Paulo, viagem que fazia três vezes por semana para participar de ensaios do Teatro Cego, companhia que faz apresentações no escuro.

A quarentena a fez economizar o tempo que gastava na estrada para suas apresentações musicais e acabou permitindo acelerar a produção. No último ano, Sara Aprendeu a dar aulas online, a editar músicas, a se acompanhar cantando ao piano e montou um estúdio em casa. Para 2021, a meta é lançar um livro que está pronto, chamado “Enquanto Amanhecemos”, finalizar um disco e terminar de escrever um musical para ela própria atuar e cantar junto a atores com e sem deficiência.

Para abril, Sara fará a apresentação “Mania de Você”, baseada no repertório de Rita Lee. A data e local, que já foram alterados em março, dependerão da situação da pandemia e deverão ser avisados em suas redes sociais. O convite veio da produtora Jaque Winter, que sugeriu a apresentação com banda só de músicos cegos. O grupo de Sara é formado por Luiz Otávio na Guitarra, Vanderson Pereira no teclado, Jonas Santiago no baixo e Jhonny Capler na guitarra.

Sara diz que a oportunidade de tocar com amigos antigos e com quem tem sintonia foi o que mais a interessou na formação do grupo. A ideia tem funcionado e ela já pensa em fazer mais projetos com a mesma banda. “Eu acredito em inclusão, em mistura de pessoas com e sem deficiência. Mas estou neste grupo porque amo esses meninos e amamos a arte um do outro.”

Foi do contato com amigos que não enxergam, presentes em sua vida desde muito cedo, que Sara encontrou o caminho para sua reabilitação após o que ela chama, divertida, de “apagão”, há 11 anos. Ela nasceu com baixa visão e, apesar de enxergar cerca de 5% do que a maioria das pessoas veem, desenhava, tirava fotos. “Quando você tem baixa visão, a funcionalidade é muito maior do que a medida médica mostra. Mesmo já enxergando pouco, foi uma perda significativa e vivenciei um período de luto”, diz.

Enquanto aprendia a lidar com a nova condição, era comum receber ligações e convites de amigos querendo dar apoio e mostrar novas possibilidades. “Saia com o Luiz Otávio, que hoje é da minha banda, sozinha. Eu morria de medo. Éramos só nós dois, sem enxergar nada e ele me guiando. Isso me ensinou sobre coragem, desbravar as ruas.”

Adaptada ao blecaute e fazendo ressalvas por receio de não generalizar sua experiência para os demais cegos, ela diz que a perda visual melhorou sua percepção musical e afinação. Também aumentou seu interesse por desenvolver mais a intuição.  “A visão se apagando, no meu caso, abriu outras percepções, sim. Mas não é uma regra. Isso tem a ver com a busca de cada ser humano, não com a cegueira”, afirma.

Um desafio que persiste, porém, é conseguir se conectar com o público durante os shows sem enxergar a reação dele. Estou aprendendo a encontrar outras conexões, a manter a atenção da plateia sem ver se ela está atenta em mim. É uma pesquisa artística e energética, de tentar me conectar de forma sutil, intuitiva”, explica.

Sara considera que seu interesse por música e livros vem de família, apesar de não haver profissionais do ramo entre os parentes. O pai dela e seus 11 irmãos sempre foram muito musicais, cantavam juntos, tocavam instrumentos e compunham. Já o gosto por contar histórias foi herança da avó materna, que a entretinha com elas quando pequena. “Eu mal sabia falar, inventava histórias da minha cabeça. Aos 12 anos, quando tive minha inclusão digital e passei a usar o computador, comecei a escrever sem parar”, conta.

O primeiro disco, “Faz Sempre Sol”, foi lançado por ela e o pai, Sérgio, em 2012.  Três anos depois saiu Invisível, primeiro álbum para adultos. O mais recente, “Tudo Que Me Faz Vibrar”, de 2018, vai do pop ao samba, incluindo também gêneros como reggae, rock e música romântica. As letras do repertório de Sara tendem a revelar o lado luminoso e corajoso da vida e da artista, com versos como “Venha o abismo e a gente vai voar”, “Eu não sei estar na vida sem me enredar” e Cada um traz suas cores, cada um é um pincel”.

A estreia em romance aconteceu em 2016, com “E Não se Esqueçam de Regar os Girassóis”. O livro tem como protagonista uma jovem que tem baixa visão e, logo nos primeiros capítulos, passa a não enxergar nada e precisa passar por processo de reabilitação semelhante ao da autora.   Seu aprendizado é apoiado por Emanuel, jovem com deficiência física e passado misterioso por quem ela logo se apaixona. Quem lê se familiariza com muitas experiências da vida sem a visão. Giovanna, protagonista da história, conhece cenários a partir das descrições feitas pelos amigos e está sempre se orientando a partir de sons, cheiros e até do deslizar dos pés pelo chão.

Sara diz que tinha dúvidas sobre se deveria ou não publicar seus textos. Formou um grupo com dez pessoas para ler junto a obra em produção  e avaliar o material. , Após o lançamento, a repercussão do trabalho, que proporcionou convites para dar palestras, a fez acreditar em seu potencial na área e a seguir se dedicando à literatura. Desde então, já há um livro de seus relatos de viagens internacionais, a maior parte delas relacionadas à música (“Vem Ver da Minha Janela”) e duas outras ficções (“Lauren e “o Pai de Lauren”).

Sara diz que o principal objetivo em sua carreira é buscar mais público para sua música e seus livros, Sara também sonha em ampliar sua atividade como atriz. Além de viabilizar o musical que está escrevendo, conta que gostaria de trabalhar com cinema e televisão. Sonha que sua música um dia a permita cantar junto de Jorge Vercilo e do artista sueco Ola Salo, duas de suas referências musicais.

Para Sara, um desafio dos artistas com deficiência para ampliar o alcance de seus trabalhos é mudar a forma paternalista como são vistos pela plateia e pela imprensa. Segundo ela, um sintoma dessa atitude é percebido nos programas de competição de cantores que estariam explorando cada vez mais a história e o drama da pessoa que está ali, em vez da música que ela tem a apresentar.

“Quero ser incluída em uma companhia de teatro pela minha atuação, ganhar espaço e estar em igualdade de competição pela minha qualidade musical, pelo apelo comercial que possa ter minha música, jamais por uma deficiência”, afirma.

Deixando de lado a atuação artística, um outro feito da Sara me chamou especial atenção. Ela doou sua voz para a criação de um software leitor de telas, lançado pela empresa F123 em 2019 com o nome de Letícia. Com isso, quem tem deficiência visual pode passar a usar o computador sendo guiado ouvindo ela ler todos os textos que aparecem na tela e também tudo o que é digitado. Para chegar neste resultado, foram 30 horas em estúdio lendo notícias de jornal e trechos de livros.

 

Pergunto a ela como, sem ser uma usuária assídua de braille, conseguiu ler com fluência em voz alta por tanto tempo? Parece algo bobo, mas A opção, ouvir o leitor de tela em um fone e tentar repetir o que ele diz logo em seguida não é uma tarefa trivial. Quando eu tento, principalmente para editar em conjunto com colegas algum texto, vai uma frase por vez, e bem vacilante, quase incompreensível.

 

Sara me explica que criou uma técnica para fazer exatamente isso, batizada de leitura sombreada. Hoje, retribui o carinho da avó dado na infância e passou a ler para ela. Vê possibilidade de que muitos estudantes e profissionais se beneficiem ao trabalhar essa habilidade incomum. Está formando grupos de interessados em aprender seu método.

 

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