Haja Vista https://hajavista.blogfolha.uol.com.br Histórias de um repórter com baixa visão Tue, 07 Dec 2021 17:23:21 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Busca por uma partitura musical em braille pode levar meses e exigir contatos internacionais https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/01/31/busca-por-uma-partitura-musical-em-braille-pode-levar-meses-e-exigir-contatos-internacionais/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/01/31/busca-por-uma-partitura-musical-em-braille-pode-levar-meses-e-exigir-contatos-internacionais/#respond Sun, 31 Jan 2021 17:27:45 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Foto-piano-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=165 Quando um músico que enxerga decide tocar algo do repertório clássico, provavelmente ele leva menos de cinco minutos para encontrar a partitura que deseja na internet e estar com ela impressa nas mãos.

Para quem usa partituras em braille, a história é bastante  diferente.

Mesmo eu sabendo o básico sobre esse código de escrita, demorou uma década até que eu encontrasse a motivação para aprender a ler com as mãos de fato. Duvidava que seria possível encontrar material para estudo nesse formato. Resignado, quando entendi que a perda gradual de visão me impediria de seguir lendo partituras convencionais, impressas em tinta, pendurei o diploma de graduação em música e fiquei por anos sem estudar piano e nem sequer escutar compositores clássicos.

Há seis meses, ouvi uma entrevista com a pianista e pesquisadora Fabiana Bonilha que me mostrou que eu estava errado. Ela, que é cega, contava sobre o repertório que construiu ao longo dos anos, sempre usando partituras em braille, e de seu projeto de ampliar o acervo de música transcrita para o sistema disponível no Brasil. Inspirado por seu depoimento, entrei em contato e, dias depois, ela se tornou minha professora.

Após muito estudo e já familiarizado com os principais sinais para indicar notas e suas durações, intervalos, articulações, dinâmicas e contrapontos, chegou a hora de começar a montar meu acervo de obras musicais.

O processo vem consumindo horas e horas dedicadas a pesquisas, vídeos no YouTube, na leitura de artigos, testes de software, emails enviados sem expectativa de retorno e um volume alto de gastos, já considerando que parte deles poderia não dar em nada.

Há muito de solitário nessa busca. Estou percorrendo um caminho que, fora minha professora, não tenho notícia de ninguém que tenha feito algo parecido no Brasil. Além disso, tento correr atrás do tempo perdido e construir rapidamente uma coleção que, para ela, foi formada paulatinamente ao longo de um estudo que começou ainda na infância.

Não sabemos de qualquer acervo online de fácil localização onde se possa fazer o download de um grande volume de músicas. Tampouco há alguma organização no Brasil que atenda à necessidade com obras digitais ou impressas.

Uma das bibliotecas mais completas para partituras em braille é a Biblioteca Italiana per i  Ciechi  “Regina Margherita, que  fica em Monza, na Itália. É preciso escrever um email em italiano para fazer as encomendas e pagar via transferência bancária. Um vizinho ajudou nas traduções (mensagens feitas via Google Tradutor tendem a ficar sem resposta) e um amigo em Portugal viabilizou o pagamento internacional. Assim que enviado o comprovante, ainda em 2020, soube que a impressora da organização está com problemas técnicos. Não sei precisar quando vou receber a encomenda.

Localizei na internet uma lista de organizações do mundo inteiro que transcrevem partituras. Passei por páginas japonesas, coreanas, alemãs e americanas. Cheguei a um site inglês chamado Golden Chord que vende partituras e, felizmente,  permite pagar via cartão de crédito. Fechado o negócio, escrevi um email. O dono da companhia ficou preocupado, não sabia se o material chegaria até minha casa. Decidimos fracionar o pedido e ele mandou só uma parte para ver se a correspondência internacional teria sucesso. Esqueci o assunto por um tempo.

Outra ideia foi buscar um transcritor no Brasil. Por amigos em comum, conheci o Jonatham Franco Rocha, que acumulou anos de experiência com musicografia braille na Fundação Dorina Nowill, em São Paulo, que chegou a construir um grande acervo, mas que ainda não consegui acessar. Animado, pensei em tudo o que gostaria de estudar ao longo do ano e fiz uma grande lista. Sonata de Mozart, peças de Villa Lobos, Francisco Mignone e Rachmaninoff. Ao final, material preparado, fomos atrás de orçamento para a impressão. Músicas em braille costumam ocupar mais espaço do que as feitas para impressão em tinta. No caso, seriam mais de 300 páginas e o custo estimado nos fez colocar o pé no freio para ver se haveria alternativa melhor. É possível que alguma biblioteca especializada ofereça o serviço de forma mais acessível, mas elas estão com atividades restritas devido à pandemia.

Uma opção foi recorrer a uma linha braille. É um aparelho que, conectado ao computador ou a partir de um cartão de memória, lê informações de arquivos digitais e os transcreve em braille no corpo do próprio dispositivo, que tem pontinhos em relevo que se levantam e se abaixam rapidamente para formar as letras e sinais musicais. Infelizmente o preço é equivalente à soma de alguns iPhones de última geração. Pensei por alguns meses e concluí que, se fosse para me trazer a música de volta, o valor do equipamento seria maior do que qualquer coisa que um dia eu poderia comprar na vida.

Neste mês, tentei transferir para o aparelho as partituras feitas no Brasil. Por enquanto, não funcionou. Apesar de ser possível ler os textos introdutórios, os sinais musicais aparecem todos embaralhados. Tudo indica haver, grosso modo, um problema de compatibilidade  entre os sinais que ficam gravados pelo software em que elas foram transcritas e o sistema usado para a leitura no dispositivo eletrônico.

Buscando uma solução técnica, encontrei reportagem que falava sobre o pianista cego chinês Hu Haipeng, que usa uma linha braille para transcrever e ler partituras. Ele possui um site com algumas músicas transcritas por ele para download gratuito. Testei a primeira, tive o mesmo problema das transcrições brasileiras. Enviei um email para o outro lado do mundo, sem acreditar que teria resposta. Em cinco minutos, recebo dele a orientação de uma configuração que precisaria alterar no computador para ler suas partituras. Funcionou. Comecei a estudar, a partir de meu novo aparelho, na última quarta (27), a Fantasia em Ré Menor, de Mozart.

Dois dias depois, chega correspondência para mim. Deixei horas de lado, sem imaginar que fosse importante. Quando abri e percebi que havia braille ali mal podia acreditar. Estavam embalados em uma manta protetora quatro livros encadernados vindos da Inglaterra, a encomenda que achávamos que se perderia no caminho.

Cada pequeno sucesso em uma busca tão improvável e que, por vezes, parece um sonho impossível, é de encher o coração de esperança. Significa que, ao contrário do que cheguei a acreditar no futuro, vou poder seguir fazendo o que mais gosto pelo resto da vida. Em poucos dias, deixei a escassez de material para trás e passei a ter até mais partituras do que tempo para estudá-las. Claro que seguirei buscando novidades, é  impossível amar a música e não querer ampliar o repertório e o conhecimento infinitamente.

Mas será que um dia vou poder decidir na hora a música que desejo tocar sem ter de pensar em mil malabarismos para conseguir chegar até ela? Talvez o avanço das tecnologias para automatizar a transcrição de partituras para o braille   a partir de impressões originais ou de suas matrizes digitais  mudem esse cenário. Um assunto para futuras pesquisas.

As conquistas dos últimos dias foram incríveis, mas preciso lembrar que este é só o começo dessa jornada que se prolongará pela vida inteira. Afinal, ter a partitura é apenas o primeiro passo até aprender a música e poder compartilhar o resultado de todo esse esforço.

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Orquestra egípcia de mulheres cegas fará live de abertura do festival de música de Curitiba https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/01/16/orquestra-egipcia-formada-por-mulheres-cegas-fara-live-de-abertura-do-festival-de-musica-de-curitiba/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/01/16/orquestra-egipcia-formada-por-mulheres-cegas-fara-live-de-abertura-do-festival-de-musica-de-curitiba/#respond Sat, 16 Jan 2021 15:25:17 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Foto-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=140 Uma orquestra de câmara formada exclusivamente por mulheres com deficiência visual fará a abertura da 38ª Oficina de Música de Curitiba neste domingo (17), às 12h. O concerto  será transmitido online neste link.

A Egyptian Blind Girls Chamber Orchestra Al Nour Wal Amal (Orquestra de Câmara Egípcia Luz e Esperança de meninas cegas) faz parte de uma organização dedicada à educação de meninas com deficiência visual fundada por voluntárias  em 1954. Sete anos depois, a entidade passou a contar com um instituto de música.

O conjunto fez sua primeira apresentação internacional em Viena, em 1988, e já esteve em 26 países. Atualmente forma sua quarta geração de musicistas.

As participantes da orquestra aprendem o repertório que apresentam a partir do sistema braille. Como não é possível tocar os instrumentos e fazer a leitura com as mãos ao mesmo tempo, todas as notas precisam ser memorizadas, o que não costuma acontecer nas orquestras formadas por músicos que enxergam, exceto no caso de solistas.

A regência do grupo fica a cargo de Mohamed Sad, único músico sem deficiência visual. Ele está à frente das apresentações desde 2015.

A relação entre as instrumentistas e o maestro também tem suas peculiaridades,  pois as participantes não teriam como ver seus gestos e movimentos com a batuta durante os concertos. Nos ensaios, o regente indica o andamento da música e a intensidade com a qual ela deve ser tocada com sons percussivos. Suas instruções são decoradas pelas musicistas para serem seguidas no palco.

Neste ano, a orquestra precisou interromper suas atividades durante cinco meses em razão da pandemia de Covid-19. Segundo a imprensa egípcia , as participantes não puderam treinar com seus instrumentos no período de distanciamento social mais rígido, pois eles ficam na associação. Após três semanas de ensaios, o retorno aconteceu em 20 de setembro, em concerto realizado na cidade natal do conjunto. Os ensaios foram feitos em grupos menores e com cuidados para evitar contágio pela doença.

O evento deste domingo terá mediação da pianista e pesquisadora Fabiana Bonilha, que tem deficiência visual e já apareceu neste blog. Participa também Luiz Amorim, professor de teoria musical e de prática de conjunto no Projeto Música Tátil, de Curitiba, idealizado por ele, que tem baixa visão.

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Encontro com a música em braille lembra que há mais para descobrir do que lamentar com a perda da visão https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/02/encontro-com-a-musica-em-braille-lembra-que-ha-mais-para-descobrir-do-que-lamentar-com-a-perda-da-visao/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/02/encontro-com-a-musica-em-braille-lembra-que-ha-mais-para-descobrir-do-que-lamentar-com-a-perda-da-visao/#respond Fri, 02 Oct 2020 16:00:23 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Foto-Braille-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=42 O domingo ensolarado convidava para uma caminhada pelo bairro, sem movimento nas ruas e cheio de obstáculo para trombar e tropeçar pelas calçadas.

Como acontece na maioria das vezes, esqueci de pegar um boné e colocar os óculos de sol antes de começar o passeio. Logo meus olhos, que vem se tornando cada vez mais sensíveis, começaram a arder com a luz. Eu andava vacilante, com a claridade ofuscando o resto que ainda tenho de visão e me fazendo imaginar postes, degraus e árvores onde só havia um pouco de grama ou uma mancha de tinta na calçada.

Tive a ideia de me livrar daquilo que estava atrapalhando. Fechei os olhos e continuei a caminhada. Que alívio. Deixei de me concentrar na visão, que mais confundia do que oferecia uma percepção segura do que estava à frente, acelerei o passo e passei a dar mais atenção ao que sentia nas mãos, que seguravam a bengala, braços vez por outra atingidos por galhos e folhas, pés e ouvidos. Segui assim até terminar a volta pelo quarteirão, apenas abrindo os olhos de vez em quando para ter certeza de que não iria entrar no meio da rua por engano.

Não recomendo que ninguém faça isso na rua de casa, muito menos sem um treinamento em Orientação e Mobilidade e destreza no uso da bengala. Conto sobre minha pequena aventura porque ela me ajudou a lembrar que, ao mesmo tempo em que sei que a visão seguirá me abandonando dia após dia, há muito mais a  experimentar e descobrir do que a lamentar nesse mergulho no escuro.

Como minha deficiência visual é resultado de um processo degenerativo da retina, lento e contínuo, foram várias as vezes em que tive de aprender a depender menos dos olhos.

Em geral, o momento de deixar a visão para trás e reinventar o jeito de levar a vida é adiado o quanto possível. Enquanto ainda dá para usar a visão embaçada, vai se forçando a vista. Há muito desgaste nisso e, em geral, o resultado fica aquém do que se poderia alcançar reconhecendo que já é hora de mudar.
Há dez anos, deixei de conseguir ler livros impressos, mesmo que posicionasse uma luminária com luz muito forte atrás de mim, o que por algum tempo funcionou —e talvez tenha acelerado o desgaste da retina. Aos poucos, fui descobrindo formas de fazer o computador e o celular lerem para mim e passei a devorar livros com uma velocidade e alegria que nunca tive antes. Quando não deu para andar sozinho com segurança pelas redondezas de casa, aprendi a andar de bengala e passei a cruzar a cidade diariamente.
Apesar desses aprendizados, havia ainda uma frustração. Depois de estudar piano por anos e fazer faculdade de música, a leitura de partituras foi se tornando cada vez mais difícil. Sabendo que, mais cedo ou mais tarde, a tarefa se tornaria impossível, abandonei o instrumento por longos anos. Um tempo depois  encontrei uma solução provisória, uma lupa eletrônica potente que me permitia, com muito esforço e paciência, distinguir a posição das notas no pentagrama e assim memorizar o que deveria tocar.

 

O método é a mais perfeita gambiarra: colocamos uma prateleira um palmo acima de um teclado eletrônico. O aparelho, do tamanho de um tablet, fica voltado para mim e amplia em sua tela uma dezena de vezes o tamanho da partitura que fica sob ele. Cansa, machuca os olhos e não garante que vou enxergar corretamente. Também não é um método que promete funcionar por muito tempo, pois logo a acuidade visual pode cair e o zoom se tornar insuficiente. Mas, até pouco tempo, era a melhor alternativa encontrada.

 

No início de julho, fazia arrumação em velharias de casa. Mesmo com dificuldade para ler coisas impressas, continuo apegado, dificilmente jogo um livro, revista ou caderno do colégio  fora. Encontrei um volume grosso encadernado chamado “Do Toque ao Som”. Por um instante achei que fosse meu TCC, entregue há dez anos. Por curiosidade, estudei um pouco sobre a escrita musical em braille durante o último ano da graduação. Mas o trabalho que entreguei era bem mais curto do que aquilo que eu acabara de achar. Na verdade, o que havia encontrado era uma dissertação de mestrado assinada por uma pessoa chamada Fabiana Bonilha. Devo ter impresso com a ideia de incluir na bibliografia da minha pesquisa, mas nunca abri. Como as chances de eu resolver ler o livro eram ainda menores agora, separei para a reciclagem.

Daqueles meus estudos antigos sobre musicografia braille, saí com a impressão de que seria uma ferramenta boa para iniciantes terem uma ideia de como se escreve música, mas pouco prática para quem buscava algo mais complexo, tanto pela dificuldade da notação, como também pela indisponibilidade de material. Além disso, nunca havia aprendido a ler com os dedos e achava que, por não ter treinado desde cedo, não conseguiria. Ou seja, apesar de ter feito elogios a musicografia braille que garantiram meu diploma, no íntimo pensava que fosse coisa para criança.

Poucos dias depois conheci um podcast chamado “Conversa de Pianista”, de entrevistas com artistas convidados. Abbri a lista com todos os episódios e fui lendo do mais recente ao mais antigo lendo o nome dos participantes. Para minha surpresa, a primeira entrevista feita para o programa foi com a Fabiana. Ainda lembrava do nome. Enquanto me preparava para dormir, deixei o episódio tocando. Ali soube que ela era cega, aprendeu piano e musicografia braille ainda na infância e seguiu estudando o repertório do instrumento e a grafia musical por toda a vida. Enfrentava todo tipo de repertório e havia se apresentado com orquestras. Ao final da conversa, deu o endereço de email. Não precisaria, já estava encantado e decidido a dar um jeito de encontrá-la para entrar nesse seu mundo de partituras para serem lidas com as mãos.

Como se aprende notação musical em braille no meio de uma pandemia?  Não sabíamos, mas decidimos tentar. As aulas tem acontecido online, a mais de 100 quilômetros de distância. Para isso, além das plataformas de conferência, trabalhamos com softwares para escrita de música que simulam uma máquina para escrever em braille e ainda tocam os comandos inseridos neles. Ou seja, permitem praticar o uso dos sinais que formam a música. Dadas as limitações do momento, a leitura na ponta dos dedos ficaria para o próximo momento.

Nesta semana, depois de aprender como representar alturas, ritmos, acentuações, bemóis e sustenidos a partir dos sinais formados por pontos táteis, recebi pelo correio minhas primeiras partituras. Sentei ao piano e com a ponta do indicador comecei a procurar as notas em meio a tantas informações que são transmitidas nas folhas em branco. Alguns minutos depois reconheci as primeiras semicolcheias do Prelúdio em Dó Menor de Bach, do “Cravo Bem Temperado”. Os olhos estavam fechados, mas a umidade que se formava neles mostrava que não estavam alheios ao que acontecia. Agradeciam porque, depois de tanta dedicação, sabiam que poderiam enfim descansar em paz.

 

 

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