Haja Vista https://hajavista.blogfolha.uol.com.br Histórias de um repórter com baixa visão Tue, 07 Dec 2021 17:23:21 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Primeiros passos com bengala exigem reconhecer as próprias limitações para ir mais longe https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/01/10/primeiros-passos-com-bengala-exigem-reconhecer-as-proprias-limitacoes-para-ir-mais-longe/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2021/01/10/primeiros-passos-com-bengala-exigem-reconhecer-as-proprias-limitacoes-para-ir-mais-longe/#respond Sun, 10 Jan 2021 16:04:28 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Foto-Bengala-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=134 Quando conheci a Vera Felippe, minha professora de orientação e mobilidade, estava esperando que ela me ensinasse uma estratégia eficiente que me permitisse usar a visão parcial que ainda tinha para me locomover com segurança. Aprenderia movimentos rápidos de olhos e pescoço para uma varredura completa do ambiente a cada instante e estaria pronto para enfrentar as ruas de São Paulo e do mundo, imaginava.

Em nosso primeiro encontro, de avaliação, eu parecia estar indo muito bem. Ela me mostrou uma foto de seus filhos e identifiquei que era um menino e uma menina em um jardim. Demos uma volta no quarteirão, eu alguns metros à frente, ela e minha mãe atrás. Cumpri a missão sem sustos e imaginava que logo ela me daria o preparo final e a autorização para fazer os caminhos que eu quisesse.

Na primeira aula de verdade, agora apenas eu e a professora, saímos novamente para caminhar. A Vera me levava até grandes degraus e pedia que eu subisse ou descesse. Eu tinha meus truques, arrastava os pés discretamente no chão quando achava que poderia ter um obstáculo por perto e usava a ponta dos dedos para descobrir a altura dele. Mas minha professora não ficou nada impressionada. O que para mim era habilidade, para ela era prova de insegurança. Entendi ali que, em vez de um sofisticado repertório de movimentos bem treinados, iria ganhar uma rudimentar bengala.

Vieram as dúvidas. Com meus 18 anos, eu nunca havia visto uma bengala para pessoas com deficiência visual nem sabia de alguém que andasse com instrumento assim, a menos que fosse para se apoiar. Tampouco que cego poderia andar sozinho. Os poucos que conheci passavam o dia sendo guiados por familiares e, até aquele momento, era o único jeito que eu imaginava possível.

Não era o meu caso. Eu tinha consciência de minha limitação visual e não escondia ela de ninguém. Por outro lado, também não saia avisando a todo mundo e poderia passar como alguém que enxergava normalmente em muitas situações, pelo menos até alguém dar a mão para me cumprimentar e eu não perceber ou alguma gafe do tipo. Mas nunca tinha pensado muito em mim como pessoa com deficiência. Afinal, eu enxergava, via fotos, lia placas de rua. Por outro lado, era como se eu estivesse sempre olhando por um tubo apertado. Se prestava atenção no que estava à frente, poderia tropeçar em algo no chão ou não reparar no que vinha pelos lados. Em uma das poucas tentativas de atravessar a rua do colégio sozinho, feita anos antes, fui salvo por uma professora que me segurou pelo braço quando eu me preparava para me colocar à frente de um carro que estava fazendo a conversão. Colegas e minha mãe viram a cena, o que adiou bastante meus planos.

Essa dificuldade de identificação, por vezes eu tendo de me entender como alguém com deficiência, em outras me sentindo como alguém que enxerga o suficiente,  fazia eu pensar que seria uma farsa usando a bengala. Meu maior medo era ser desmascarado. Eu uso óculos de grau. Só por essa pista, quantos segundos levaria até alguém perceber que não sou cego coisa nenhuma e denunciar minha fraude para todos no meio da rua?

A Vera dizia que a pessoa com baixa visão vive em uma situação muito particular, em cima do muro, mas pulando de um lado para o outro dele o tempo todo. Em alguns momentos, fica do lado dos que enxergam e realizam várias atividades visuais com desenvoltura. Noutros, precisa pular para o outro lado e expor suas limitações. Pode ter algo de bom em poder ficar saltando para lá e para cá, mas é uma situação que nem sempre é fácil de ser compreendida pela própria pessoa ou por quem está ao redor.

Hoje, o muro está ficando bem baixinho, pois minha visão seguiu diminuindo com o tempo. Naquele momento, porém, resolvi tratar a questão de forma pragmática. Iria aprender a usar a bengala e andaria com ela só quando precisasse. De noite, a visão de quem tem retinose pigmentar diminui muito, então concedi que a ajuda talvez fosse útil. Para dias ensolarados, ia andar com a bengala até conseguir minha liberação familiar e, quando me sentisse seguro e experiente no meio da rua, passaria a levar ela bem dobrada dentro da mochila.

Nossas aulas não tinham um horário ou endereço fixo. As primeiras foram em seu condomínio, onde me familiarizei com os movimentos que usaria com minha nova companheira. Aprendi a fazê-la rastrear o chão fazendo arcos. Na seguinte fomos andar pela vizinhança. Noutro dia pegar Metrô, ônibus, experimentar diferentes caminhos que seriam importantes no meu dia a dia em situações com dificuldade e luminosidade variadas.

Mais do que apresentar uma técnica, a Vera me ensinou que tudo bem pedir ajuda a um desconhecido para saber a hora em que o ônibus chegasse, para atravessar a rua ou saber onde ficava determinado número. Não escondeu que a bengala faria de mim o centro das atenções onde quer que eu chegasse, mas que isso poderia ser levado com leveza e bom humor. Que eu poderia ser visto com pena por quem não conhece minha história e mal sabe o caminho que estou fazendo, mas que o importante era eu entender que a bengala é um instrumento que me levaria para mais longe do que os outros poderiam imaginar. Ela me ensinou a me sentir confortável e em paz com quem eu sou.

Três meses depois de nossas primeiras aulas, a Vera marcou o dia de minha prova mais importante. Eu deveria sair da faculdade, em Perdizes, e ir de ônibus até minha casa, em Santo Amaro. Para fazer isso, são necessárias duas conduções e uma hora e meia de trajeto.

Com o coração em disparada, comecei o percurso seguindo à risca as instruções de minha professora. No ponto de ônibus, esperei até que chegasse alguém que pudesse ler para mim o itinerário do veículo. Uma moça sorridente com vestido branco, provavelmente também aluna da faculdade, me fez a primeira gentileza dessa nova etapa de minha vida. Comecei a achar que a bengala me caía muito bem.

Dentro da condução, novamente estava tenso, com medo de errar o lugar de descer na avenida Paulista. Sabia que seria na terceira parada, perto da avenida Brigadeiro Luis Antônio. Enfrentei a timidez e conversei com o motorista para que ele me avisasse quando fosse a hora de desembarcar.

Um instante de paz interrompeu a pressa de chegar logo em casa. Na avenida, um menino tocava violino. Um grupo começou a se formar. Um senhor pediu o instrumento emprestado. Tocou as notas iniciais do concerto “Primavera” de Vivaldi. Esqueci por alguns minutos que todos deveriam estar preocupados comigo e pela primeira vez senti que usufruir o caminho pode ser tão bom quanto chegar e partir.

A segunda condução estava lotada. Conforme mais passageiros foram entrando, resolvi passar a catraca para sair do aperto. Consegui uma cadeira perto do cobrador e novamente deixei combinada a ajuda na hora de desembarcar.

Dei os passos finais em direção a minha casa em ritmo acelerado, mal conseguindo acreditar que me aproximava do destino. Poucos instantes após eu abrir a porta, toca o interfone. A Vera estava na portaria. Não entendi.

Minha professora entrou fazendo festa, dizendo que eu deveria marcar a data no calendário, pois esse era o dia da minha independência. Ela me contou que me seguiu durante parte do caminho. Cobriu o rosto com um chapéu e quase foi descoberta quando vim para a parte traseira do ônibus. Debochada, disse que uma passageira percebeu seu comportamento estranho e perguntou se ela estava espionando o marido para descobrir alguma traição. Nem meus pais sabiam de seu plano de me acompanhar à distância. Provavelmente acreditar que eu estaria sem proteção alguma fazia parte do treinamento que cabia a eles.

Não a obedeci bem, não anotei qual foi o dia em que tudo isso aconteceu. Mas sei que foi no início de setembro de 2007 e seguirá sendo um dos dias mais importantes de minha vida.

 

Continua…
Mais sobre bengala na próxima semana.

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Aplicativo da Microsoft funciona como bússola sonora para indicar o caminho https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/20/aplicativo-da-microsoft-funciona-como-bussola-sonora-para-indicar-o-caminho/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/20/aplicativo-da-microsoft-funciona-como-bussola-sonora-para-indicar-o-caminho/#respond Tue, 20 Oct 2020 19:10:52 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Homem-com-bengala-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=81 Conforme minha visão foi diminuindo e enxergar o nome das ruas e, depois, as próprias placas se tornou impossível, me perder na hora de experimentar um caminho novo virou da rotina.

Foi para ter um aplicativo de GPS, e não para conversar pelo WhatsApp, que abri mão do velho celular com teclado e finalmente passei a usar um smartphone. Isso depois de uma temporada de um mês em Boston na qual eu treinei muito a conversação com estrangeiros, porque não acertava o caminho da escola de inglês para a qual eu ia todos os dias sem pedir ajuda a quem aparecesse pela frente. Algumas vezes entrei em carros de desconhecidos que se ofereceram para me levar ao meu destino depois de me verem ir e vir pela mesma rua rem rumo aparente.

A ferramenta mais usada é bem conhecida dos videntes (a gente chama assim quem enxerga, mesmo que não saiba ler o futuro), o Google Maps. Apesar de não ser feito para cegos, ele dá uma boa ajuda ao dizer quando chegou a hora de fazer uma curva para a direita ou para a esquerda. Porém meu senso de direção não me ajuda a saber como reagir quando ele diz algo como “siga na direção noroeste na Alameda Barão de Limeira”.

Na hora em que o aplicativo diz que cheguei ao meu destino, significa que preciso apurar os sentidos para descobrir onde fica de fato a entrada ou pedir ajuda para quem estiver na calçada, pois não é raro ainda estar a uns 10 metros de distância de onde quero ir.

Nesta semana, a Microsoft lança no Brasil para usuários do sistema iOS (dos aparelhos da Apple) um serviço que traz uma proposta diferente para dar as coordenadas para quem não vê. O sistema, chamado Soundscape, propõe tornar o celular uma espécie de bússola auditiva para cegos. Com isso, traz boas ideias para resolver algumas das limitações das ferramentas tradicionais.

No app, o usuário define onde quer chegar e coloca ali um sinalizador sonoro virtual. Iniciada a caminhada, ele recebe a instrução sobre qual direção seguir por meio de 3 padrões diferentes de bipes: um grave e espaçado, um médio e com mais batidas e um agudo e acelerado. Esses barulhinhos funcionam como um “tá quente, tá frio” para mostrar qual direção se deve seguir conforme se aponta o aparelho para frente ou para algum lado.

Para ter a experiência completa, a recomendação é colocar fones. Isso porque o som vai pulando de um ouvido ao outro para mostrar o lado para o qual se deve caminhar.

Apesar de o som tridimensional ser atraente, não estou convencido de que seja uma boa andar na rua com fones. É que som nas duas orelhas me causa certa desorientação. Se eu tentar ouvir música enquanto tomo café da manhã, é bem possível que coloque manteiga no leite e açúcar no pão. Confirmei que ouvir e andar ao mesmo tempo não é simples com uma amiga cega que se perde no corredor de casa se usa seu MP3 player. Mesmo assim, fui testar a novidade.

Na hora de escolher o lado para dar o primeiro passo, o estímulo auditivo é mais útil do que ter informações sobre os pontos cardeais. Mas seguir o som do destino tem limitações. Saber que o supermercado está na sua frente há 200 metros não resolve tudo se isso, interpretado literalmente, significa passar por cima de uma casa e uma escola para se chegar lá. Traçar a melhor rota, então, fica sob responsabilidade do usuário, o que pode ser vantagem ou uma desvantagem, dependendo da necessidade.

Enquanto caminhava, o aplicativo ia avisando o nome das ruas que eu atravessava e alertava sobre faixas de pedestre em distância segura. Não será mais um problema não ler as placas e agora vou aprender direito como se chamam as vias do bairro,  finalmente.

O bipe do aplicativo, que segue firme o tempo todo, mesmo em uma caminhada de quilômetros,começou a ficar desconfortável e deixar de escutar o som dos carros e da bengala no chão com a nitidez usual me fez falta e cometi pequenos deslizes que não são comuns, como ficar próximo demais da borda da calçada. A opção de deixar o sistema mudo é fácil de achar, ainda bem. Fiz a maior parte da caminhada sem ele e só liguei novamente quando estava há 50 metros dos destinos que fui escolhendo.

O aplicativo foi bem ao indicar o momento de virar e procurar a porta do chaveiro, da agência do banco e da padaria com bastante precisão. Por outro lado, errei na hora de entrar na estação de metrô Praça da Árvore e a confundi com uma galeria que fica a poucos passos dali. O aplicativo também me fez pensar que a porta da igreja foss antes do lugar correto.

A função que mais me interessou foi a de criar meus próprios pontos de referência. Isso poderia ser ótimo em locais onde os GPS tradicionais não funcionam, por não haver lá ruas para as quais eles possam nos mandar virar. Já me coloquei a imaginar como seria legal se eu pudesse ir gravando meus próprios trajetos, marcando cada passo com pedacinhos de pães virtuais, tal como na história de João e Maria. Se eu quisesse ir sozinho no cinema, por exemplo, poderia deixar um pouquinho de miolo em cada parte do caminho até lá: um na entrada do shopping, outro na escada rolante, mais um na bilheteria.

A ideia é excelente, mas é melhor esperar a precisão do sistema aumentar. Tentei marcar um carro no estacionamento do Parque do Ibirapuera para ver se o aplicativo me levaria para ele corretamente na hora de ir embora.  Fosse eu seguir o bipe, tentaria encontrá-lo no meio das árvores. Da mesma forma, no shopping, passei em frente à cafeteria que havia sinalizado para trás e fui parar numa loja de sapatos do outro lado do corredor.

Segundo a Microsoft, a precisão da indicação do Soundscape pode variar de acordo com a regiáo, pois ela depende da quantidade de antenas nas proximidades e do equipamento do usuário. Conforme a infraestrutura e os chips evoluem, a tendência é que a tecnologia se torne cada vez melhor.

Os novos recursos podem ser bastante úteis, mas não acredite que a vida ficou fácil por causa deles. Andar na rua continuará um grande desafio enquanto a acessibilidade não avança e as vias se tornam mais convidativas e seguras. Uma ferramenta que me leve passo por passo até o destino ainda está mais para filme de fantasia ou ficção científica, mas combinando preparo, teimosia, orientações do smartphone e auxílio dos outros pedestres, dá para se chegar em qualquer lugar.

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Gentileza e empatia tornam a vida mais segura e ajudam a vender pão https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/11/gentileza-e-empatia-tornam-a-vida-mais-segura-e-ajudam-a-vender-pao/ https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/2020/10/11/gentileza-e-empatia-tornam-a-vida-mais-segura-e-ajudam-a-vender-pao/#respond Sun, 11 Oct 2020 15:00:02 +0000 https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Foto-Padaria-300x215.jpg https://hajavista.blogfolha.uol.com.br/?p=56 Eu poderia contar o número de dias que passamos em quarentena em broas de milho.

Se em algo tenho sorte na vida é morar há menos de 100 metros de uma padaria chamada Sol. Além das minhas broas, temos à disposição um cardápio de PFs para o almoço, pizzas, frango de televisão e até sopas durante o inverno.

Quando vivíamos naquele mundo em que saíamos para trabalhar de manhã e voltávamos de noite, minhas visitas à padaria não tinham regularidade. Um fim de semana ou outro para o almoço, uma ida no dia de folga.

Desde março, as coisas mudaram. O café da tarde passou a ser em casa. Dedico algum respeito ao pão de forma integral, todas as manhãs uso a torradeira para fazer do saudável o palatável, , mas fazer isso duas vezes por dia por tanto tempo seria demais. Mesmo defensor de uma quarentena rígida, abri uma importante exceção e passei a sair para buscar o pão nosso e a broinha de cada dia diariamente.

Algumas das funcionárias da padaria já me conheciam. A Valéria me cumprimentava na rua quando estava de moto fazendo entregas. A Paula sempre perguntava se eu iria querer o salmão com alcaparra de sempre no almoço.

Mais de seis meses de quarentena e as relações se estreitaram. Prova disso é que a Lu, responsável pelo caixa, decorou meu celular e não pergunta mais na hora de marcar meus pontos no programa de fidelidade.

Conheci em uma dessas visitas a Alessandra, lá chamada de Poti. Veio do Rio Grande do Norte com o marido em uma longa viagem de moto no começo do ano.

Frequentador do local há quase uma década, sempre cheguei na padaria e fui até o balcão sozinho, pedi o que queria, paguei a conta e saí sem ajuda. A exceção era quando ia almoçar, situação que recomenda esperar um funcionário indicar uma mesa, pra não ter risco de sentar no colo de ninguém por engano.

A Alessandra mudou o roteiro. Na primeira vez em que me atendeu, depois de separar o pedido, deixou o balcão e me levou até o caixa. A seguir, perguntou onde eu iria e me ajudou a atravessar a rua.

A história foi se repetindo na tarde seguinte, na próxima, na outra semana. Tinha dias em que eu chegava e ouvia algum dos funcionários indo buscar a Poti no fundo da padaria: “Vem atender seu cliente”.

Numa dessas saídas, que não duravam mais do que um minuto, a Alessandra contou os comentários que se faziam sobre nossas saídas. Alguém disse que ela não precisava ajudar, que eu sabia atravessar a rua sozinho.

Verdade, voltei para casa desacompanhado uma centena de vezes. O que não quer dizer que seja confortável e seguro. Apesar de morar numa via que aparenta ser pacata, não é raro ver carros subindo a ladeira da rua de casa em alta velocidade. Demora para passar alguém na rua e nem todos oferecem um braço para me acompanhar na travessia. Na maior parte das vezes, confio no ouvido mesmo.

Nem sempre é fácil para quem tem uma deficiência saber a hora de pedir ajuda. Coisas que consigo fazer com segurança, sempre melhor resolver por conta própria. O que seria perigoso demais, como atravessar a avenida São João e seu farol que fica aberto para pedestres velocistas no caminho do trabalho, não arrisco. Mas têm uma série de coisas no meio disso tudo para as quais seria melhor ter apoio, mas nem sempre estou com pique de esperar ou me sinto à vontade para pedir ajuda.
Para A Alessandra, a questão era bem mais simples. Não custa nada ajudar e é bom dar uma saidinha por um minuto pra refrescar. E ignorou as críticas de lado.

E fez mais. Um dia, na hora em que eu chegava, ela me flagrou dando uma dolorida canelada em uma bicicleta estacionada ao lado da porta. Na tarde seguinte, me disse que a bike era de um colega e o levou a prometer que encontraria outro lugar para guardál-a.

Em defesa da minha amiga, preciso explicar algo importante. Não pense que a Poti estivesse fazendo suas gentilezas e deixando de dar sua contribuição ao caixa do patrão. Inúmeras vezes soube por ela que havia um pão fresquinho saindo, que tinha uma rosca de ricota que provavelmente eu não havia visto. Claro que não sou capaz de resistir a sugestão dessas e toda a família se maravilhou com o pão de fermentação natural feito com amendoim.

Noutro dia fui almoçar na padaria antes do horário de entrada da Alessandra. Na hora de ir embora, sem eu precisar dizer nada, Paula saiu comigo e atravessamos a rua juntos. no seguinte, a Alessandra estava fora, foi a Mari a responsável pela travessia.

Contei para minha amiga que, depois que ela chegou, nunca mais voltei para casa sozinho. Todo mundo aprendeu, disse a Alessandra, com uma boa risada. Para fazer essa transformação, não precisou de nenhum discurso sobre inclusão, dependeu só de gentileza e empatia.

 

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