No Tinder, o amor também pode ser cego

Havia duas coisas que eu não sabia bem como resolver após instalar o Tinder por insistência (seria bullying) de uma amiga da Redação. Como decidir em quem dar like, já que não enxergo as fotos? E, principalmente, em que momento eu deveria contar que tenho deficiência visual?

Pensava que, se fizesse a revelação de imediato, estariam arruinadas todas as chances de conhecer alguém nesse mundo virtual e baseado em imagens em que o importante é um corpo perfeito. Em caso de qualquer desvio da norma, bastaria arrastar para o lado esquerdo.

A primeira dificuldade enfrentei a partir da intuição, jeito chique de dizer que era no chute mesmo. Luíza, Ângela, Lígia e Gabriela são nomes de música do Tom Jobim –é um ótimo motivo para dar like. Ela disse que gosta de cachorros no perfil? Aposto que seremos felizes para sempre. A propósito, a maioria escreve que gosta de ler, de música, de praia e de cachorro.

Preferi deixar pra pensar depois em como explicaria a questão de eu andar pra lá e pra cá com uma bengala.  Ou melhor, para a última hora.

Após o match, era a primeira conversa que eu começava por ali. Trocávamos mensagens de texto. Ela me mandou uma foto e perguntou o que eu achava. Ainda bem que ela avisou antes que estava me mostrando seus gatinhos. Fiz que vi, disse que eram fofos e achei outro assunto correndo pra não dar nenhuma pista de que não fazia ideia se eram brancos ou malhados, siameses, persas ou vira-latas.

Enquanto não criava coragem, ia apresentando minhas qualidades. O plano era parecer tão legal, mas tão legal que talvez nem fizesse diferença não enxergar. Como se, para suavizar o defeito na lataria, fosse preciso mostrar primeiro uma série de qualidades raras no mercado. É um bom rapaz, estuda, trabalha, gosta de arte, faz trabalho voluntário, corre, tem um monte de amigo. É cego, mas vale a pena mesmo assim.

Combinamos de nos conhecer em um lugar que toca forró naquela mesma semana.  Agora não tinha mais como não avisar que ela fora vítima de um estelionato.  Contei que tinha algo a explicar antes de confirmarmos o encontro e revelei meu segredo.

Penso que a tática foi um tanto desonesta. Naquele instante, se ela não se sentisse à vontade para sair com um cego, não adiantaria inventar dor de barriga ou morte da avó para fugir da enrascada sem se passar por uma preconceituosa desalmada. Como sairíamos dessa situação constrangedora em que coloquei nós dois?

A resposta veio em um áudio, o primeiro que trocamos em toda a conversa de um par de dias. Ela me disse que eu não precisava ter explicado nada. Na verdade, ela até suspeitou que houvesse algo diferente, porque em algumas fotos eu não olhava diretamente para a câmera. Tudo continuava confirmado, eu só teria de ter paciência se ela não soubesse me ajudar em alguma coisa. E quis saber como eu fazia para ler as mensagens, se era melhor seguir escrevendo ou passar a gravar mensagens dali em diante.

Véspera do encontro e chega nova mensagem. Ela também tinha algo para avisar. Como eu não via sua foto,  queria me contar que era gordinha. Se achava bonita, mas seria legal que eu soubesse antes. Enquanto eu me esforçava para esconder a deficiência e ser alguém que não existia, não me dava conta de estar conversando com pessoas reais, com seus próprios medos e inseguranças. Por ser diferente de todos, eu era igual a qualquer um ali. Descobri que o mundo não era assim tão cruel  e pessoas boas estariam dispostas a me conhecer de verdade, nem o super-herói que fingi ser, nem uma pessoa limitada a quem só resta ter dó por sua deficiência.

Dançamos. Percebi que sem querer havia contado outra mentira, essa mais inocente, ao dizer que me virava no forró. Mesmo assim nos divertimos.

Apaguei o aplicativo depois de alguns meses. Descobri que prefiro conhecer alguém sem a expectativa criada quando os dois deram um like numa rede de namoro, ainda mais porque o meu terá sido questão de intuição. Quem sabe eu reconsidere se um dia lançarem uma versão mais divertida para mim, com amostra das vozes de quem está a procura de uma companhia.

Desde aquele encontro, apareço junto com minha bengala nas fotos de meus perfis em redes sociais. Não tem nada melhor e mais bonito do que gostar de si mesmo e se mostrar para o mundo do jeito que se é.