Trabalho de casa pode ser cômodo, mas amplia barreiras de acessibilidade

Trabalhar de casa na pandemia significou para mim não encontrar mais pedras, buracos, degraus, rua para atravessar sem sinalização sonora, piso tátil mal instalado, lixeira e orelhão no meio do caminho até o trabalho.

Além de terem sumido todos os roxinhos que costumo carregar nas canelas e nos braços, não é nada mal  ganhar um par de horas por dia para tocar outros projetos em vez de repetir todas as manhãs e noites a mesma baldeação para a Linha Vermelha na estação da Sé.

Mesmo com essas vantagens, ainda não me decidi se esse novo normal está mais para o paraíso, a liberdade ou a consolação.

Acontece que Redação de jornal é uma delícia de aglomeração. O espaço de trabalho não tem paredes  e muitos colegas estão sempre por perto em seus computadores. Só a alegria de encontrar tanta gente inteligente e talentosa de segunda a sexta seria o suficiente para dar saudades. Mas, além disso, há outros desafios em trabalhar sozinho sem enxergar.

No jornal, não são nem uma nem duas vezes por dia que eu me levanto e vou de mesa em mesa perguntando quem está livre. É que, lidando com informação que vem de todos os lados e em formatos variados, é inevitável a um jornalista que enxerga pouco precisar de um olho amigo para ver uma foto ou checar uma infografia.

Quando apresentei a Luciana na semana passada, expliquei que os textos que aparecem na tela de um computador são falados por uma voz artificial. Esses softwares são chamados leitores de tela. Mas o que acontece se a informação só está disponível em um gráfico ou uma foto? Aí temos um problema de acessibilidade e vou precisar pedir socorro para que a notícia chegue direito ao leitor.

No começo da quarentena, a família estava toda em casa, sem muito o que fazer. Dava pra pedir pra minha mãe ler um projeto de lei sobre licenciamento de empresas que havia sido fotografado e meu sistema não reconhecia as letras ou olhar uma apresentação sobre expectativas para ampliação de vendas no delivery durante a pandemia numa boa. Mas agora em que todos saem para outros compromissos  e fico só eu em casa, como faz?

São duas soluções possíveis: a primeira é Trocar o que antes seria um cutucão no ombro por uma mensagem no WhatsApp para encontrar algum colega que possa socorrer. Apesar de ajudar a manter vivo o contato diário, não é tão rápido quanto antes e fica mais difícil saber quem tem um minutinho naquele exato momento. Outra alternativa é voltar à fonte. Ou seja, telefonar para quem fez o belo PowerPoint que eu não consigo ler e explicar que o repórter é cego e será preciso achar um outro jeito de enviar os dados. Descrever os gráficos ao telefone pode funcionar se a correria for muita.

E o que fazer quando, para realizar uma pesquisa em um site, é preciso decifrar uma série de letrinhas embaralhadas, os temidos captchas? Ou quando a fonte com quem eu preciso falar com urgência enviou o número de celular em um email no qual está uma foto de seu cartão de visitas? E quando preciso fazer uma legenda e a única pessoa em casa é meu irmão, que está dormindo? Essa é fácil, acordo ele pelo bem da notícia, que justifica enfrentar qualquer bronca que vou levar depois, com toda a razão.

Talvez colocando tudo na balança, o conforto de poder entrevistar o presidente de uma empresa calçando meia e chinelo seja compensado pelo maior trabalho que vai dar para ler o balanço da companhia para me preparar para o papo. Na quarentena, as barreiras diárias que a pessoa com deficiência tem de saltar deixam de estar nas calçadas e passam para dentro de seu quarto. Mas, com todos ajudando, mesmo que de longe, vai dar tudo certo.

Com seus novos desafios, a quarentena também incentivou a descoberta de novas possibilidades.

Minha amiga Marcela Mahayana, que é cantora e professora de música, ficou frustrada quando todos os seus alunos, que recebia em casa, suspenderam as aulas por causa da pandemia.

Seis meses depois, nomes como Hangout, Google Meet,  Microsoft Teams, Skype, Zoom e FaceTime são familiares para ela, que explica com desenvoltura as vantagens de cada plataforma. Ela própria cria as reuniões online na hora das aulas e chama seus alunos.

Por que não fazia isso antes da pandemia?  Em boa medida, por não saber como faria para acertar a posição da câmera sem enxergar. Agora ela já tem a solução: coloca o celular na estante para apoio de partituras de seu piano e pergunta para o aluno se ele a enxerga bem e vai ajustando o foco até estar tudo pronto para começar a cantoria.

Depois que pegou o jeito, Marcela atende oito alunos pelo celular. Ainda não conhece pessoalmente a maior parte deles, que chegaram até ela por outro aplicativo que ela domina bem, o GetNinjas. Também se reúne via internet com participantes de um coral dos Trovadores Urbanos, em que trabalha como assistente.

Ela me conta que gosta mais das aulas presenciais e tem saudades de receber os alunos, mas precisa manter o cuidado pelo seu bem e de sua família. Também já tomou a decisão de que, quando as coisas melhorarem, as atividades à distância vão continuar ocupando parte de sua agenda. Assim ela consegue atender alunos que moram mais longe e diminuem as chances de alguém faltar por causa do trânsito.