Encontro com a música em braille lembra que há mais para descobrir do que lamentar com a perda da visão

O domingo ensolarado convidava para uma caminhada pelo bairro, sem movimento nas ruas e cheio de obstáculo para trombar e tropeçar pelas calçadas.

Como acontece na maioria das vezes, esqueci de pegar um boné e colocar os óculos de sol antes de começar o passeio. Logo meus olhos, que vem se tornando cada vez mais sensíveis, começaram a arder com a luz. Eu andava vacilante, com a claridade ofuscando o resto que ainda tenho de visão e me fazendo imaginar postes, degraus e árvores onde só havia um pouco de grama ou uma mancha de tinta na calçada.

Tive a ideia de me livrar daquilo que estava atrapalhando. Fechei os olhos e continuei a caminhada. Que alívio. Deixei de me concentrar na visão, que mais confundia do que oferecia uma percepção segura do que estava à frente, acelerei o passo e passei a dar mais atenção ao que sentia nas mãos, que seguravam a bengala, braços vez por outra atingidos por galhos e folhas, pés e ouvidos. Segui assim até terminar a volta pelo quarteirão, apenas abrindo os olhos de vez em quando para ter certeza de que não iria entrar no meio da rua por engano.

Não recomendo que ninguém faça isso na rua de casa, muito menos sem um treinamento em Orientação e Mobilidade e destreza no uso da bengala. Conto sobre minha pequena aventura porque ela me ajudou a lembrar que, ao mesmo tempo em que sei que a visão seguirá me abandonando dia após dia, há muito mais a  experimentar e descobrir do que a lamentar nesse mergulho no escuro.

Como minha deficiência visual é resultado de um processo degenerativo da retina, lento e contínuo, foram várias as vezes em que tive de aprender a depender menos dos olhos.

Em geral, o momento de deixar a visão para trás e reinventar o jeito de levar a vida é adiado o quanto possível. Enquanto ainda dá para usar a visão embaçada, vai se forçando a vista. Há muito desgaste nisso e, em geral, o resultado fica aquém do que se poderia alcançar reconhecendo que já é hora de mudar.
Há dez anos, deixei de conseguir ler livros impressos, mesmo que posicionasse uma luminária com luz muito forte atrás de mim, o que por algum tempo funcionou —e talvez tenha acelerado o desgaste da retina. Aos poucos, fui descobrindo formas de fazer o computador e o celular lerem para mim e passei a devorar livros com uma velocidade e alegria que nunca tive antes. Quando não deu para andar sozinho com segurança pelas redondezas de casa, aprendi a andar de bengala e passei a cruzar a cidade diariamente.
Apesar desses aprendizados, havia ainda uma frustração. Depois de estudar piano por anos e fazer faculdade de música, a leitura de partituras foi se tornando cada vez mais difícil. Sabendo que, mais cedo ou mais tarde, a tarefa se tornaria impossível, abandonei o instrumento por longos anos. Um tempo depois  encontrei uma solução provisória, uma lupa eletrônica potente que me permitia, com muito esforço e paciência, distinguir a posição das notas no pentagrama e assim memorizar o que deveria tocar.

 

O método é a mais perfeita gambiarra: colocamos uma prateleira um palmo acima de um teclado eletrônico. O aparelho, do tamanho de um tablet, fica voltado para mim e amplia em sua tela uma dezena de vezes o tamanho da partitura que fica sob ele. Cansa, machuca os olhos e não garante que vou enxergar corretamente. Também não é um método que promete funcionar por muito tempo, pois logo a acuidade visual pode cair e o zoom se tornar insuficiente. Mas, até pouco tempo, era a melhor alternativa encontrada.

 

No início de julho, fazia arrumação em velharias de casa. Mesmo com dificuldade para ler coisas impressas, continuo apegado, dificilmente jogo um livro, revista ou caderno do colégio  fora. Encontrei um volume grosso encadernado chamado “Do Toque ao Som”. Por um instante achei que fosse meu TCC, entregue há dez anos. Por curiosidade, estudei um pouco sobre a escrita musical em braille durante o último ano da graduação. Mas o trabalho que entreguei era bem mais curto do que aquilo que eu acabara de achar. Na verdade, o que havia encontrado era uma dissertação de mestrado assinada por uma pessoa chamada Fabiana Bonilha. Devo ter impresso com a ideia de incluir na bibliografia da minha pesquisa, mas nunca abri. Como as chances de eu resolver ler o livro eram ainda menores agora, separei para a reciclagem.

Daqueles meus estudos antigos sobre musicografia braille, saí com a impressão de que seria uma ferramenta boa para iniciantes terem uma ideia de como se escreve música, mas pouco prática para quem buscava algo mais complexo, tanto pela dificuldade da notação, como também pela indisponibilidade de material. Além disso, nunca havia aprendido a ler com os dedos e achava que, por não ter treinado desde cedo, não conseguiria. Ou seja, apesar de ter feito elogios a musicografia braille que garantiram meu diploma, no íntimo pensava que fosse coisa para criança.

Poucos dias depois conheci um podcast chamado “Conversa de Pianista”, de entrevistas com artistas convidados. Abbri a lista com todos os episódios e fui lendo do mais recente ao mais antigo lendo o nome dos participantes. Para minha surpresa, a primeira entrevista feita para o programa foi com a Fabiana. Ainda lembrava do nome. Enquanto me preparava para dormir, deixei o episódio tocando. Ali soube que ela era cega, aprendeu piano e musicografia braille ainda na infância e seguiu estudando o repertório do instrumento e a grafia musical por toda a vida. Enfrentava todo tipo de repertório e havia se apresentado com orquestras. Ao final da conversa, deu o endereço de email. Não precisaria, já estava encantado e decidido a dar um jeito de encontrá-la para entrar nesse seu mundo de partituras para serem lidas com as mãos.

Como se aprende notação musical em braille no meio de uma pandemia?  Não sabíamos, mas decidimos tentar. As aulas tem acontecido online, a mais de 100 quilômetros de distância. Para isso, além das plataformas de conferência, trabalhamos com softwares para escrita de música que simulam uma máquina para escrever em braille e ainda tocam os comandos inseridos neles. Ou seja, permitem praticar o uso dos sinais que formam a música. Dadas as limitações do momento, a leitura na ponta dos dedos ficaria para o próximo momento.

Nesta semana, depois de aprender como representar alturas, ritmos, acentuações, bemóis e sustenidos a partir dos sinais formados por pontos táteis, recebi pelo correio minhas primeiras partituras. Sentei ao piano e com a ponta do indicador comecei a procurar as notas em meio a tantas informações que são transmitidas nas folhas em branco. Alguns minutos depois reconheci as primeiras semicolcheias do Prelúdio em Dó Menor de Bach, do “Cravo Bem Temperado”. Os olhos estavam fechados, mas a umidade que se formava neles mostrava que não estavam alheios ao que acontecia. Agradeciam porque, depois de tanta dedicação, sabiam que poderiam enfim descansar em paz.