Gentileza e empatia tornam a vida mais segura e ajudam a vender pão
Eu poderia contar o número de dias que passamos em quarentena em broas de milho.
Se em algo tenho sorte na vida é morar há menos de 100 metros de uma padaria chamada Sol. Além das minhas broas, temos à disposição um cardápio de PFs para o almoço, pizzas, frango de televisão e até sopas durante o inverno.
Quando vivíamos naquele mundo em que saíamos para trabalhar de manhã e voltávamos de noite, minhas visitas à padaria não tinham regularidade. Um fim de semana ou outro para o almoço, uma ida no dia de folga.
Desde março, as coisas mudaram. O café da tarde passou a ser em casa. Dedico algum respeito ao pão de forma integral, todas as manhãs uso a torradeira para fazer do saudável o palatável, , mas fazer isso duas vezes por dia por tanto tempo seria demais. Mesmo defensor de uma quarentena rígida, abri uma importante exceção e passei a sair para buscar o pão nosso e a broinha de cada dia diariamente.
Algumas das funcionárias da padaria já me conheciam. A Valéria me cumprimentava na rua quando estava de moto fazendo entregas. A Paula sempre perguntava se eu iria querer o salmão com alcaparra de sempre no almoço.
Mais de seis meses de quarentena e as relações se estreitaram. Prova disso é que a Lu, responsável pelo caixa, decorou meu celular e não pergunta mais na hora de marcar meus pontos no programa de fidelidade.
Conheci em uma dessas visitas a Alessandra, lá chamada de Poti. Veio do Rio Grande do Norte com o marido em uma longa viagem de moto no começo do ano.
Frequentador do local há quase uma década, sempre cheguei na padaria e fui até o balcão sozinho, pedi o que queria, paguei a conta e saí sem ajuda. A exceção era quando ia almoçar, situação que recomenda esperar um funcionário indicar uma mesa, pra não ter risco de sentar no colo de ninguém por engano.
A Alessandra mudou o roteiro. Na primeira vez em que me atendeu, depois de separar o pedido, deixou o balcão e me levou até o caixa. A seguir, perguntou onde eu iria e me ajudou a atravessar a rua.
A história foi se repetindo na tarde seguinte, na próxima, na outra semana. Tinha dias em que eu chegava e ouvia algum dos funcionários indo buscar a Poti no fundo da padaria: “Vem atender seu cliente”.
Numa dessas saídas, que não duravam mais do que um minuto, a Alessandra contou os comentários que se faziam sobre nossas saídas. Alguém disse que ela não precisava ajudar, que eu sabia atravessar a rua sozinho.
Verdade, voltei para casa desacompanhado uma centena de vezes. O que não quer dizer que seja confortável e seguro. Apesar de morar numa via que aparenta ser pacata, não é raro ver carros subindo a ladeira da rua de casa em alta velocidade. Demora para passar alguém na rua e nem todos oferecem um braço para me acompanhar na travessia. Na maior parte das vezes, confio no ouvido mesmo.
Nem sempre é fácil para quem tem uma deficiência saber a hora de pedir ajuda. Coisas que consigo fazer com segurança, sempre melhor resolver por conta própria. O que seria perigoso demais, como atravessar a avenida São João e seu farol que fica aberto para pedestres velocistas no caminho do trabalho, não arrisco. Mas têm uma série de coisas no meio disso tudo para as quais seria melhor ter apoio, mas nem sempre estou com pique de esperar ou me sinto à vontade para pedir ajuda.
Para A Alessandra, a questão era bem mais simples. Não custa nada ajudar e é bom dar uma saidinha por um minuto pra refrescar. E ignorou as críticas de lado.
E fez mais. Um dia, na hora em que eu chegava, ela me flagrou dando uma dolorida canelada em uma bicicleta estacionada ao lado da porta. Na tarde seguinte, me disse que a bike era de um colega e o levou a prometer que encontraria outro lugar para guardál-a.
Em defesa da minha amiga, preciso explicar algo importante. Não pense que a Poti estivesse fazendo suas gentilezas e deixando de dar sua contribuição ao caixa do patrão. Inúmeras vezes soube por ela que havia um pão fresquinho saindo, que tinha uma rosca de ricota que provavelmente eu não havia visto. Claro que não sou capaz de resistir a sugestão dessas e toda a família se maravilhou com o pão de fermentação natural feito com amendoim.
Noutro dia fui almoçar na padaria antes do horário de entrada da Alessandra. Na hora de ir embora, sem eu precisar dizer nada, Paula saiu comigo e atravessamos a rua juntos. no seguinte, a Alessandra estava fora, foi a Mari a responsável pela travessia.
Contei para minha amiga que, depois que ela chegou, nunca mais voltei para casa sozinho. Todo mundo aprendeu, disse a Alessandra, com uma boa risada. Para fazer essa transformação, não precisou de nenhum discurso sobre inclusão, dependeu só de gentileza e empatia.