Escola inclusiva ensina que há mais semelhanças do que diferenças

O Bruno é um dos meus melhores e mais antigos amigos, daqueles que se tem uma história compartilhada. A gente se conheceu quando eu tinha oito anos e passei a estudar no Colégio Friburgo. Frequentava a casa dele e conhecíamos a família um do outro. A intimidade e o carinho são tão grandes que, sempre que nos encontramos, ele me dá um abraço e diz: “Continua ficando cada dia mais feio”!

Muitos anos depois de nos formarmos na escola e na faculdade, fomos comer empanadas perto de casa. Ele me contava de seu curso de pós-graduação. Em uma conversa que teve por lá, o assunto foi parar na inclusão de pessoas com deficiência na escola. E, me contava o Bruno, ele não se lembrou que teria muito a dizer sobre o assunto, por ter convivido tanto tempo comigo. Só mais tarde se deu conta que, vejam só, ele teve um amiguinho com deficiência na mesma classe por dez anos.

Nunca foi segredo na escola que eu tinha uma limitação visual. Na terceira série, quando fui para Cuba fazer um tratamento alternativo para os olhos e operei a retina, todo mundo sabia o motivo de eu ter faltado algumas semanas. Meus amigos entendiam que eu precisava sentar na primeira fila, não era bom no futebol e minha visão era praticamente zero de noite ou no teatro, onde o ambiente era mais escuro, por causa de uma doença nos olhos.

Algumas histórias minhas relacionadas a não enxergar bem eram conhecidas e repetidas entre os colegas, como meu hábito de pisar em todas as poças d’água nos dias de chuva, molhando a todos ou a vez em que, na saída de um passeio no shopping, abri a porta do carro errado pensando que fosse o do meu pai e fiz a motorista gritar assustada, achando que fosse um assalto.

No último ano do colegial, a turma foi para Bariloche. Sem ninguém precisar combinar nada, a cada momento um colega vinha para me guiar pelas ruas das cidades, pelas pistas de dança ou pelas montanhas cheias de neve. Comecei a prestar atenção nesse troca-troca e percebi que, ao final daqueles dias, todos da turma haviam me conduzido em alguma situação. Agradeci a todos por isso quando nosso professor de filosofia, o Emílio, ligou uma câmera e pediu que cada um lembrasse do fato mais marcante nos tempos de colégio.

Fiquei pensando, como é possível, então, que o Bruno não tenha notado nada em meio há tantos sinais de que vivíamos uma experiência progressista de inclusão, que agora entrou em debate após edição de um decreto com a nova Política Nacional de Educação Especial.

 

Meu palpite é que ninguém avisou, nem a mim e nem ao Bruno, que eu era tão diferente assim. Ou o que explica o susto que a Soninha tomou quando viu que eu seria o próximo da fila na brincadeira dos meninos, não autorizada, de enfileirar vários caixotes para um salto à distância, com um bom risco de cair de cara no chão? Uma pena, eu até hoje penso que iria conseguir passar pelos obstáculos, caso ela não desmanchasse a diversão.

Se a escola tivesse ensinado a mim e a meus amigos que eu era uma pessoa com deficiência que precisava ser protegida para não sofrer nenhum arranhão, será que eu teria saltado num lago de uma plataforma a cinco metros de altura em nossa viagem para Bonito? Teria feito tantas trilhas lá na Serra do Japi? Será que iria participar da brincadeira do montinho, quando derrubávamos uma pessoa no chão e todos iam se deitando por cima sem delicadeza alguma? Teria tomado um porre numa balada em Bariloche que fez o Alessandro ter de me levar abraçado para que eu não caísse até a Vera, professora de química, enquanto eu sofria com um ataque de riso que parece ter durado horas?

Tenho a impressão de que, na virada dos anos 1990 para os anos 2000, não se falava muito em inclusão. Ao menos eu não conhecia a palavra. Mas, no meu caso, ela aconteceu tão bem que nem percebemos o quanto todos aprenderam. Tenho certeza de que quem esteve comigo no Friburgo jamais vai pensar que ter uma dificuldade visual faz a pessoa ser muito diferente. Sabem que quem enxerga pouco é igualzinho aos outros e faz de tudo. Pode até ser o melhor da classe em história (posição que eu dividia com o Bruno) e em português. A única coisa é que de vez em quando precisa de uma mão para encontrar o caminho.

Os anos que passei no colégio foram os melhores da minha vida, eu era muito feliz ali e sabia. Mas a história poderia ter sido outra. Logo após meu diagnóstico, houve uma conversa de meus pais com a direção da escola sobre a conveniência de me transferirem para uma instituição especial para cegos. Pelo que me contaram, a conversa terminou com a diretora dizendo que eu só sairia de lá formado.

A bem da verdade, não fui um aluno que trouxesse muitas dificuldades para meus professores. Minha visão diminuiu mais devagar do que o previsto e não precisei aprender braille naquela época, o que simplificou as coisas para a escola, já que eu usava o mesmo material que todos os colegas. Mas a determinação do colégio de me aceitar ali, não importando o que acontecesse, é muito diferente de histórias que conheço de pessoas cegas próximas a mim que tiveram matrículas rejeitadas naquela época porque, diziam as escolas, faltariam ali recursos adequados para atender bem o “aluno especial”.

Por outro lado, só passei a conviver com alguém com deficiência visual anos mais tarde, quando estava terminando a faculdade. Penso que teria sido legal ter amigos para jogar futebol de olhos vendados ou disputar um torneio de xadrez no escuro, coisas que ainda não fiz. Todos têm muito a aprender vivenciando a diversidade, inclusive eu.

Se os adultos deixarem de lado os preconceitos e fornecerem as condições adequadas, sejam elas material em braille, intérpretes de Libras ou caminhos acessíveis e professores dispostos a buscar melhores formas de ensinar, as crianças cuidarão de brincar e aprender umas com as outras.

 

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