Pequenas arrumações trazem muita independência

Uma das coisas que posso prever a respeito do meu futuro é que jamais vou juntar minha escova de dente com a de ninguém.

Mas não tire conclusões apressadas. Trato aqui de uma questão prática, objetiva e plenamente justificável, para o bem comum.

Acontece que, conforme deixei de distinguir se a escova é branca, azul ou vermelha e passei a não enxergar mais a marca da pasta de dente, foi preciso rediscutir as fronteiras no banheiro daqui de casa. O que é meu passou a ficar do lado direito da pia, o que é dos outros, à esquerda.

A nova geografia evita o compartilhamento de itens de higiene pessoal pouco recomendável. E também impede que se repitam pequenas confusões, como o uso do creme de barbear como desodorante ou vice-versa. Agora fica muito mais fácil memorizar o formato e administrar com as mãos uma meia dúzia de objetos sem me perder em meio a hidratantes, cremes, perfumes, escovas de cabelo e pomadas que ficam à margem esquerda.

Mas ainda há muito território em disputa na casa. E nos últimos dias conquistei a parte que me cabe onde a batalha é mais intensa: a cozinha.

Acontece que eu gosto de tomar café depois do almoço, hábito que não é tão sagrado para todos aqui em casa. Poderia fazer minha própria bebida, se o fogão não estivesse com defeito há muitos meses e só acendesse com fósforo. Para os demais moradores isso não faz diferença e o conserto vai sendo adiado, mas prefiro não usar ferramentas que fazem fogo e eu não enxergo nem sinto se estão acesas ou apagadas.

Por isso, para evitar pedir o mesmo favorzinho todos os dias, arranjar meu cafezinho passou a ser uma espécie de jogo entre família. A brincadeira era fazer alguém lembrar que eu queria café sem eu ter de falar isso explicitamente. Se minha mãe dizia que ia ficar com sono depois do almoço, respondia que era um bom motivo para tomarmos um café. Se havia ainda um último assunto para conversar, uma bebida quente acompanhava bem o papo. Se alguém tinha feito bolo, ele ficaria ainda melhor se alguém preparasse algo para acompanhar.

Minha criatividade para lembretes disfarçados, porém, não resistiu a uma centena de dias em quarentena. E decidimos que seria bom para todos que eu arranjasse uma cafeteira elétrica, daquelas que se coloca filtro, pó e água e, depois, é só apertar um botão para que o café saia quentinho em poucos minutos.

A máquina ficou semanas em casa, sem eu tomar conhecimento de como lidar com ela. Se perdeu ali, entre pães de forma, remédios e a manteigueira no fundo da pequena mesa de almoço.

O insucesso na nova tarefa era culpa da falta de controle sobre o espaço, o que me deixava vulnerável às sabotagens dos demais usuários da cozinha. Não ajudava ter uma cafeteira se o pó de café tanto poderia estar na geladeira, na pia, no armário ou em cima da mesa. As investigações para descobrir quem mexeu no meu queijo, escondeu o leite ou mudou o achocolatado de lugar são diárias. Encher o açucareiro é uma tarefa especialmente ingrata. Em geral, significa ter de abrir embalagens fechadas com pregadores de roupa no armário e na geladeira e colocar o nariz em pacotes de farinha de trigo, de amêndoa e de banana até encontrar o que procuro.

Decidimos encerrar a disputa e negociar uma trégua. Eu iria assumir minha nova função doméstica de vez, desde que ganhasse uma bancada na cozinha, ao lado do fogão.

Vitorioso, agora tenho um cantinho com tudo o que eu preciso para realizar meus desejos. Ao fundo, a nova máquina. Do lado dela, uma bandeja com um copo de plástico fechado com pó de café, uma colher que dá a medida exata, filtros e uma vasilha com bico que me ajuda a acertar a mira na hora de colocar água na cafeteira sem molhar o que estiver ao redor. Também houve espaço para deixar lá uma caixa com sachês de chá e, à frente, a torradeira.

Uma pequena arrumação que permite a quem não enxerga ter o que precisa ao alcance das mãos pode ser uma ótima ideia na hora de se buscar mais autonomia e independência. Mas ter perdido a visão não me deixou um fanático da simetria e da ordem. Pelo contrário, isso já vem de muito tempo. Quando criança e com mais acuidade visual, organizava meus gibis da Turma da Mônica por número e atualizava um arquivo no computador em que catalogava as edições que tinha. Por muito tempo meus livros e discos eram organizados por ordem alfabética. Hoje, em que manter a organização é mais difícil, ainda não tenho como encontrá-los sozinho. Fiquei bagunceiro depois que minha visão diminuiu. Agora que estou aprendendo braille, já me imagino preenchendo dias e dias fazendo etiquetinhas táteis com título e nome do autor para todos eles.

Enquanto isso, o importante é que a turma está satisfeita com meu café que sai aqui  em casa todos os dias. Dizem até que estou ficando pronto para a hora de juntar as escovas.