Ser cego é ter orgulho de minha forma de sentir o mundo

Ao acordar neste domingo e dar “bom dia” para minha assistente virtual, fico sabendo que um dos feitos do breve governo Jânio Quadros foi ter criado, em 1961, o Dia do Cego, comemorado neste 13 de dezembro, em homenagem a Santa Luzia, padroeira da visão.

Que seja, apesar de ainda não muito conhecida, data de orgulho e de disseminar a consciência sobre o que é perceber o mundo sem depender dos olhos.

Eu, que a cada dia enxergo menos e vivencio uma nova forma de perceber o mundo, me coloquei a pensar no pouco que já aprendi sobre o que é ser cego para mim.

Ser cego é andar no escuro em um mundo que não foi preparado para você se locomover com segurança. Na verdade, é viver em um mundo que foi construído sem levar você em consideração. E, mesmo assim, se sentir culpado quando tropeça, se perde ou esbarra em alguém.

É andar pela rua e muitos terem piedade de você, distribuírem santinhos, orações e palavras de encorajamento. É ser abordado por um homem que se diz ex-presidiário e que ao mesmo tempo em que pede dinheiro, se pergunta se é pecado tomar esmola de alguém com deficiência.

É esperar por minutos para atravessar a rua e perceber que muitos passam do seu lado apressadamente sem oferecer ajuda.

Mas também é encontrar pessoas no meio do caminho que só não te levam até a porta de casa para ter certeza de que você chegará em segurança depois que você jura dez vezes que não precisa mesmo. É ter conversas profundas com desconhecidos que percebem na sua deficiência um canal para iniciar uma confidência sobre os desafios da vida.

Ser cego é não saber quem está te cumprimentando e ficar em dúvida se é melhor contar que não reconheceu a outra pessoa ou só dar um “oi”, um sorriso de canto de boca e ir embora de fininho. E de repente notar que era alguém de quem você sentia saudades e que mereceria ter recebido uma resposta muito mais entusiasmada.

É estar com os ouvidos atentos a todo e qualquer ruído, chiado de televisão, barulho do relógio, canto de passarinho. É escutar sem querer conversas para as quais você não foi chamado e não se aguentar de vontade de fazer um comentário intrometido.

É não conseguir despregar a atenção de qualquer música que esteja tocando, mesmo que seja o som ambiente de um supermercado. É, sobretudo, amar a música.

Também é ficar desnorteado em lugares com som alto, não conseguir conversar em festas e baladas e passar a impressão de ser antí-social.

É ficar por fora de assuntos do momento, como os novos filmes em cartaz ou as séries da moda, porque falta acessibilidade na maioria das produções. É se frustrar por não ter entendido um filme que queria muito assistir. É não entender os memes que estão circulando nas redes e nos grupos e ter que lembrar o tempo todo que, para mim, só terá graça se alguém descrever a imagem.

Também é passar mais de oito horas seguidas no cinema assistindo a filmes com audiodescrição quando há um festival em que as exibições têm acessibilidade. E não ter muito com quem conversar sobre eles, porque as fitas, àquela altura, já ficaram velhas.

É não largar do celular por um só instante e passar o dia escutando o leitor de tela dizer as notícias, as mensagens no WhatsApp, livros inteiros. É escanear livros, página por página, quando eles não estão disponíveis em formato digital.

É ir para o aeroporto, pedir ajuda à companhia aérea e ter medo de ficar esquecido em alguma cadeira do salão de embarque.

Também é andar por uma cidade desconhecida, se perder uma dezena de vezes, mas sentir orgulho de sí mesmo por ter conseguido aprender a andar de metrô em um lugar novo. E deixar funcionários de agências de turismo e guias de cabelo em pé por querer fazer todos os passeios mais complicados. Até o dia em que um deles te diz que entrar naquela gruta me ajudando é realmente arriscado, que é pai de um menino que precisa dele, e perceber que, dessa vez, talvez você tenha exagerado.

Ser cego é sentir o mundo com o corpo. É ler uma música ou um livro com a ponta dos dedos. É  aprender a tocar piano sem a visão e perceber que a mão pode ser mais ágil do que os olhos imaginam.

É fazer a barba ou cortar as unhas usando o tato como única referência e não se machucar na maioria das vezes.

 

É cozinhar usando o olfato e provando a comida o tempo todo para acertar o ponto. Ter de aprender truques para não derrubar açúcar na mesa na hora de adoçar o café. Acertar algumas vezes.

 

É não ter muita certeza sobre como se vestir, porque não se sabe quem usa roupa social ou camiseta polo e quem anda por aí de moletom.
Ser cego é criar rostos imaginados na mente, não saber muito bem quem tem barba, bigode ou cavanhaque, quem é branco ou negro, japonês ou loiro, careca ou cabeludo. É gostar de alguém e pedir que um amigo ou amiga descreva seu rosto.

É ter preguiça quando alguém envia a milésima reportagem sobre uma pesquisa que um dia pode te devolver a visão, um novo implante de chip ou mais um tratamento heterodoxo, mais uma provável roubada igual as que você já caiu por vezes o suficiente desde pequeno.

 

Ser cego, para mim, é principalmente ser feliz por ter um modo próprio de sentir o mundo. Não é sofrer por não enxergar, mas é ter a consciência de que o mundo ainda não está preparado para ser plenamente usufruído sem a visão.