Mesmo sem enxergar, vi a todos belos e em alta definição

Na última semana de 2020, juntei amigos e familiares para uma reunião virtual em que toquei piano e todos puderam conversar com descontração para compensar todos os meses de distanciamento neste período de pandemia.

Enquanto eu cuidava da música, meu pai foi o responsável por organizar a sala do Zoom, me avisando quem chegava e convidando os participantes a interagir.

Mais tarde conversava com ele sobre o sucesso do evento. O que meu pai me dizia soou estranho. Em vez de falar sobre como eram as pessoas a quem viu, ele falava sobre a voz delas, algo meio inusitado vindo de alguém que enxerga.

O que acontece é que eu e ele vimos eventos bem diferentes. Eu não sabia, mas ,meu pai me contou que a maioria dos participantes manteve a câmera fechada a maior parte do tempo. Então, na tela, só viam a mim e a meu piano.

Da minha parte, sem enxergar o que aparecia no celular, tenho imagens claríssimas de todos os que passaram por aquela conferência. Não vou cometer indiscrições, mas poderia dizer quem eu vi assistindo a apresentação da cozinha, no sofá, em uma cadeira de trabalho ou estirado na cama. Vi gente de cabelo preso e solto, de pijama e de roupa social. Algumas pessoas apareciam na imagem da cintura para cima, outras davam um close no rosto, como se estivessem bem pertinho.

Não estou falando em nenhum poder especial, principalmente  porque boa parte dos meus palpites deve estar errada.

O que acontece é que, ao menos no meu caso, deixar de distinguir rostos usando a visão na maioria das situações  não significou que eles deixassem de existir. Quando não consigo ver objetivamente, minha mente dá um jeito de inventar o que falta.

É um processo automático e involuntário. Mesmo que eu passe uma hora com alguém e seu rosto, para meus olhos, não passe de uma mancha da qual não se distingue forma alguma, a recordação que virá quando pensar naquela pessoa certamente terá olhos, nariz, boca e orelhas.

Em geral, o rosto que invento para cada pessoa não envelhece e raramente muda ao longo do tempo. Tanto que é difícil corrigir algum deles quando necessário. Há, inclusive, pessoas que possuem duas versões imaginárias para mim. Acontece, por exemplo, quando fico sabendo com atraso que alguém tem o cabelo, a cor de pele, a barba ou o nariz completamente diferente do que eu pensei.

Mesmo que minha visão do dia a dia tenha pouca definição, as imagens opacas que vejo não ficam impressas na mente. Guardo a todas as pessoas queridas em alta resolução. E, como sou eu quem crio minha foto imaginária de cada um, vejo a todos belos e em seus melhores ângulos.

Importante dizer que minha vivência com imagens mentais não é igual a de quem nunca enxergou e não criou as mesmas referências visuais para serem recombinadas pelo que chega pelos demais sentidos. Certamente há diferentes formas de perceber e guardar o outro, quando ele está perto e também distante. Não me falta curiosidade para essas novas descobertas.