Primeiros passos com bengala exigem reconhecer as próprias limitações para ir mais longe

Quando conheci a Vera Felippe, minha professora de orientação e mobilidade, estava esperando que ela me ensinasse uma estratégia eficiente que me permitisse usar a visão parcial que ainda tinha para me locomover com segurança. Aprenderia movimentos rápidos de olhos e pescoço para uma varredura completa do ambiente a cada instante e estaria pronto para enfrentar as ruas de São Paulo e do mundo, imaginava.

Em nosso primeiro encontro, de avaliação, eu parecia estar indo muito bem. Ela me mostrou uma foto de seus filhos e identifiquei que era um menino e uma menina em um jardim. Demos uma volta no quarteirão, eu alguns metros à frente, ela e minha mãe atrás. Cumpri a missão sem sustos e imaginava que logo ela me daria o preparo final e a autorização para fazer os caminhos que eu quisesse.

Na primeira aula de verdade, agora apenas eu e a professora, saímos novamente para caminhar. A Vera me levava até grandes degraus e pedia que eu subisse ou descesse. Eu tinha meus truques, arrastava os pés discretamente no chão quando achava que poderia ter um obstáculo por perto e usava a ponta dos dedos para descobrir a altura dele. Mas minha professora não ficou nada impressionada. O que para mim era habilidade, para ela era prova de insegurança. Entendi ali que, em vez de um sofisticado repertório de movimentos bem treinados, iria ganhar uma rudimentar bengala.

Vieram as dúvidas. Com meus 18 anos, eu nunca havia visto uma bengala para pessoas com deficiência visual nem sabia de alguém que andasse com instrumento assim, a menos que fosse para se apoiar. Tampouco que cego poderia andar sozinho. Os poucos que conheci passavam o dia sendo guiados por familiares e, até aquele momento, era o único jeito que eu imaginava possível.

Não era o meu caso. Eu tinha consciência de minha limitação visual e não escondia ela de ninguém. Por outro lado, também não saia avisando a todo mundo e poderia passar como alguém que enxergava normalmente em muitas situações, pelo menos até alguém dar a mão para me cumprimentar e eu não perceber ou alguma gafe do tipo. Mas nunca tinha pensado muito em mim como pessoa com deficiência. Afinal, eu enxergava, via fotos, lia placas de rua. Por outro lado, era como se eu estivesse sempre olhando por um tubo apertado. Se prestava atenção no que estava à frente, poderia tropeçar em algo no chão ou não reparar no que vinha pelos lados. Em uma das poucas tentativas de atravessar a rua do colégio sozinho, feita anos antes, fui salvo por uma professora que me segurou pelo braço quando eu me preparava para me colocar à frente de um carro que estava fazendo a conversão. Colegas e minha mãe viram a cena, o que adiou bastante meus planos.

Essa dificuldade de identificação, por vezes eu tendo de me entender como alguém com deficiência, em outras me sentindo como alguém que enxerga o suficiente,  fazia eu pensar que seria uma farsa usando a bengala. Meu maior medo era ser desmascarado. Eu uso óculos de grau. Só por essa pista, quantos segundos levaria até alguém perceber que não sou cego coisa nenhuma e denunciar minha fraude para todos no meio da rua?

A Vera dizia que a pessoa com baixa visão vive em uma situação muito particular, em cima do muro, mas pulando de um lado para o outro dele o tempo todo. Em alguns momentos, fica do lado dos que enxergam e realizam várias atividades visuais com desenvoltura. Noutros, precisa pular para o outro lado e expor suas limitações. Pode ter algo de bom em poder ficar saltando para lá e para cá, mas é uma situação que nem sempre é fácil de ser compreendida pela própria pessoa ou por quem está ao redor.

Hoje, o muro está ficando bem baixinho, pois minha visão seguiu diminuindo com o tempo. Naquele momento, porém, resolvi tratar a questão de forma pragmática. Iria aprender a usar a bengala e andaria com ela só quando precisasse. De noite, a visão de quem tem retinose pigmentar diminui muito, então concedi que a ajuda talvez fosse útil. Para dias ensolarados, ia andar com a bengala até conseguir minha liberação familiar e, quando me sentisse seguro e experiente no meio da rua, passaria a levar ela bem dobrada dentro da mochila.

Nossas aulas não tinham um horário ou endereço fixo. As primeiras foram em seu condomínio, onde me familiarizei com os movimentos que usaria com minha nova companheira. Aprendi a fazê-la rastrear o chão fazendo arcos. Na seguinte fomos andar pela vizinhança. Noutro dia pegar Metrô, ônibus, experimentar diferentes caminhos que seriam importantes no meu dia a dia em situações com dificuldade e luminosidade variadas.

Mais do que apresentar uma técnica, a Vera me ensinou que tudo bem pedir ajuda a um desconhecido para saber a hora em que o ônibus chegasse, para atravessar a rua ou saber onde ficava determinado número. Não escondeu que a bengala faria de mim o centro das atenções onde quer que eu chegasse, mas que isso poderia ser levado com leveza e bom humor. Que eu poderia ser visto com pena por quem não conhece minha história e mal sabe o caminho que estou fazendo, mas que o importante era eu entender que a bengala é um instrumento que me levaria para mais longe do que os outros poderiam imaginar. Ela me ensinou a me sentir confortável e em paz com quem eu sou.

Três meses depois de nossas primeiras aulas, a Vera marcou o dia de minha prova mais importante. Eu deveria sair da faculdade, em Perdizes, e ir de ônibus até minha casa, em Santo Amaro. Para fazer isso, são necessárias duas conduções e uma hora e meia de trajeto.

Com o coração em disparada, comecei o percurso seguindo à risca as instruções de minha professora. No ponto de ônibus, esperei até que chegasse alguém que pudesse ler para mim o itinerário do veículo. Uma moça sorridente com vestido branco, provavelmente também aluna da faculdade, me fez a primeira gentileza dessa nova etapa de minha vida. Comecei a achar que a bengala me caía muito bem.

Dentro da condução, novamente estava tenso, com medo de errar o lugar de descer na avenida Paulista. Sabia que seria na terceira parada, perto da avenida Brigadeiro Luis Antônio. Enfrentei a timidez e conversei com o motorista para que ele me avisasse quando fosse a hora de desembarcar.

Um instante de paz interrompeu a pressa de chegar logo em casa. Na avenida, um menino tocava violino. Um grupo começou a se formar. Um senhor pediu o instrumento emprestado. Tocou as notas iniciais do concerto “Primavera” de Vivaldi. Esqueci por alguns minutos que todos deveriam estar preocupados comigo e pela primeira vez senti que usufruir o caminho pode ser tão bom quanto chegar e partir.

A segunda condução estava lotada. Conforme mais passageiros foram entrando, resolvi passar a catraca para sair do aperto. Consegui uma cadeira perto do cobrador e novamente deixei combinada a ajuda na hora de desembarcar.

Dei os passos finais em direção a minha casa em ritmo acelerado, mal conseguindo acreditar que me aproximava do destino. Poucos instantes após eu abrir a porta, toca o interfone. A Vera estava na portaria. Não entendi.

Minha professora entrou fazendo festa, dizendo que eu deveria marcar a data no calendário, pois esse era o dia da minha independência. Ela me contou que me seguiu durante parte do caminho. Cobriu o rosto com um chapéu e quase foi descoberta quando vim para a parte traseira do ônibus. Debochada, disse que uma passageira percebeu seu comportamento estranho e perguntou se ela estava espionando o marido para descobrir alguma traição. Nem meus pais sabiam de seu plano de me acompanhar à distância. Provavelmente acreditar que eu estaria sem proteção alguma fazia parte do treinamento que cabia a eles.

Não a obedeci bem, não anotei qual foi o dia em que tudo isso aconteceu. Mas sei que foi no início de setembro de 2007 e seguirá sendo um dos dias mais importantes de minha vida.

 

Continua…
Mais sobre bengala na próxima semana.