Bengala é símbolo de autonomia e empoderamento, não de incapacidade

A bengala de Crhistiane Oliveira tem até nome, é a Cacá. Porém, mesmo sendo chamada de forma afetuosa, a relação entre as duas é cheia de conflitos.

Crhistiane tem 26 anos e tem baixa visão desde 2014, quando passou por uma cirurgia para retirar um tumor no cérebro.

Quando o professor Marcelo Inagaki, que dá aulas de orientação e mobilidade no Serviço de Reabilitação Lucy Montoro – Umaitá, em São Paulo, falou com ela sobre andar com bengala pela primeira vez, Christiane ficou zangada.

“Disse a ele, ‘você quer me ver brava?’ Bengala era uma coisa que eu realmente não queria usar”.

Por um tempo, ela deixou as aulas. Voltou depois que a prima deu de presente e de surpresa sua primeira bengala e a incentivou a retomar os treinamentos.

Crhistiane diz ainda se sentir desconfortável na rua nas vezes em que saiu com a Cacá, junto da mãe. A sensação é de virar o centro das atenções, todos parecem estar olhando para ela e muitas pessoas fazem perguntas sobre sua visão, afirma.

Por outro lado, ela conta que de vez em quando fica com vontade de pegar a Cacá e ir para a rua. O primeiro passo, começar a sentir gosto, ela está dando, diz.

“Já pensei na minha cabeça, ‘porque a Christiane não toma vergonha na cara e anda com a bengala?’ Eu sei que uma hora vou precisar enfrentar a realidade. Tem horas que abro a bengala no fundo de casa, fico treinando com ela. Penso, vou ficar segurando o braço de alguém para andar até quando?”

 

Não faltam ideias para o momento em que  Crhistiane estiver andando com independência, junto da Cacá. “Sou muito batedora de pernas. Se agora eu quisesse ir ao shopping, poderia ir, sem ter de pedir a ninguém. Ia ser só colocar uma roupa bonitinha, pegar a Cacá e sair”.

Outro plano para o qual a Cacá poderá ser uma boa ajuda, conta, é retomar a faculdade de administração, que precisou deixar para cuidar da saúde.

Marcelo, professor de Christiane, diz que a maioria das pessoas que têm baixa visão e que se beneficiariam do uso da bengal levam tempo, por vezes anos, até aceitar essa realidade.

“A bengala ainda é vista como símbolo de incapacidade, de vergonha, em vez de sinal de independência. Quando a pessoa entende que ela trará empoderamento, aí sim aceita sair com ela.”

Por outro lado, ele destaca que o treinamento em orientação e mobilidade, importante para que pessoas com deficiência visual tenham independência e segurança,  envolve o desenvolvimento de habilidades que vão além das técnicas para uso correto da bengala para rastrear obstáculos no caminho.

É preciso também desenvolver a orientação espacial, noções de sentido horário e anti-horário, a habilidade de traçar rotas, o equilíbrio e, em alguns casos, trabalhar o preparo físico. O treinamento pode envolver atividades variadas, de jogos individuais e em grupo a saídas para a rua para entender conceitos como quadra, quarteirão e o funcionamento do trânsito.

Por causa da pandemia, os atendimentos presenciais foram suspensos no centro de reabilitação. Agora os grupos de orientação e mobilidade vêm se reunindo virtualmente. As conversas têm servido para os participantes trocarem conquistas e desafios na busca por mais autonomia, conta Marcelo.

O professor diz considerar que o tempo de distanciamento foi bem aproveitado. Quando retornarem as aulas presenciais, muitos estarão mais preparados para dar os próximos passos, afirma.

Ioletí de Castro, 43, também aluna do centro de reabilitação com baixa visão, diz que chorou na hora em que uma médica sugeriu que deveria usar bengala. Porém, quando teve contato com uma pela primeira vez, foi amor à primeira vista, conta. “A sensação que tive foi de liberdade.”

O que fez toda a diferença, segundo ela, foi a conversa que teve com o marido assim que chegou em casa após a consulta. Ele disse que o importante não era o que os outros pensariam, e sim sua segurança.

Ela conta que já havia andado sozinha na rua mesmo antes do treinamento, principalmente para levar as filhas à escola. Algumas vezes caiu e se machucou, o que ela acha que não teria acontecido se já estivesse usando a bengala.

Ioleti também deu um nome para sua companheira. Batizou-a de Zé Alfredo, em homenagem a personagem da novela “Império” que, nas palavras dela, era muito bem humorado, apesar de enfrentar situações difíceis.