Busca por uma partitura musical em braille pode levar meses e exigir contatos internacionais
Quando um músico que enxerga decide tocar algo do repertório clássico, provavelmente ele leva menos de cinco minutos para encontrar a partitura que deseja na internet e estar com ela impressa nas mãos.
Para quem usa partituras em braille, a história é bastante diferente.
Mesmo eu sabendo o básico sobre esse código de escrita, demorou uma década até que eu encontrasse a motivação para aprender a ler com as mãos de fato. Duvidava que seria possível encontrar material para estudo nesse formato. Resignado, quando entendi que a perda gradual de visão me impediria de seguir lendo partituras convencionais, impressas em tinta, pendurei o diploma de graduação em música e fiquei por anos sem estudar piano e nem sequer escutar compositores clássicos.
Há seis meses, ouvi uma entrevista com a pianista e pesquisadora Fabiana Bonilha que me mostrou que eu estava errado. Ela, que é cega, contava sobre o repertório que construiu ao longo dos anos, sempre usando partituras em braille, e de seu projeto de ampliar o acervo de música transcrita para o sistema disponível no Brasil. Inspirado por seu depoimento, entrei em contato e, dias depois, ela se tornou minha professora.
Após muito estudo e já familiarizado com os principais sinais para indicar notas e suas durações, intervalos, articulações, dinâmicas e contrapontos, chegou a hora de começar a montar meu acervo de obras musicais.
O processo vem consumindo horas e horas dedicadas a pesquisas, vídeos no YouTube, na leitura de artigos, testes de software, emails enviados sem expectativa de retorno e um volume alto de gastos, já considerando que parte deles poderia não dar em nada.
Há muito de solitário nessa busca. Estou percorrendo um caminho que, fora minha professora, não tenho notícia de ninguém que tenha feito algo parecido no Brasil. Além disso, tento correr atrás do tempo perdido e construir rapidamente uma coleção que, para ela, foi formada paulatinamente ao longo de um estudo que começou ainda na infância.
Não sabemos de qualquer acervo online de fácil localização onde se possa fazer o download de um grande volume de músicas. Tampouco há alguma organização no Brasil que atenda à necessidade com obras digitais ou impressas.
Uma das bibliotecas mais completas para partituras em braille é a Biblioteca Italiana per i Ciechi “Regina Margherita, que fica em Monza, na Itália. É preciso escrever um email em italiano para fazer as encomendas e pagar via transferência bancária. Um vizinho ajudou nas traduções (mensagens feitas via Google Tradutor tendem a ficar sem resposta) e um amigo em Portugal viabilizou o pagamento internacional. Assim que enviado o comprovante, ainda em 2020, soube que a impressora da organização está com problemas técnicos. Não sei precisar quando vou receber a encomenda.
Localizei na internet uma lista de organizações do mundo inteiro que transcrevem partituras. Passei por páginas japonesas, coreanas, alemãs e americanas. Cheguei a um site inglês chamado Golden Chord que vende partituras e, felizmente, permite pagar via cartão de crédito. Fechado o negócio, escrevi um email. O dono da companhia ficou preocupado, não sabia se o material chegaria até minha casa. Decidimos fracionar o pedido e ele mandou só uma parte para ver se a correspondência internacional teria sucesso. Esqueci o assunto por um tempo.
Outra ideia foi buscar um transcritor no Brasil. Por amigos em comum, conheci o Jonatham Franco Rocha, que acumulou anos de experiência com musicografia braille na Fundação Dorina Nowill, em São Paulo, que chegou a construir um grande acervo, mas que ainda não consegui acessar. Animado, pensei em tudo o que gostaria de estudar ao longo do ano e fiz uma grande lista. Sonata de Mozart, peças de Villa Lobos, Francisco Mignone e Rachmaninoff. Ao final, material preparado, fomos atrás de orçamento para a impressão. Músicas em braille costumam ocupar mais espaço do que as feitas para impressão em tinta. No caso, seriam mais de 300 páginas e o custo estimado nos fez colocar o pé no freio para ver se haveria alternativa melhor. É possível que alguma biblioteca especializada ofereça o serviço de forma mais acessível, mas elas estão com atividades restritas devido à pandemia.
Uma opção foi recorrer a uma linha braille. É um aparelho que, conectado ao computador ou a partir de um cartão de memória, lê informações de arquivos digitais e os transcreve em braille no corpo do próprio dispositivo, que tem pontinhos em relevo que se levantam e se abaixam rapidamente para formar as letras e sinais musicais. Infelizmente o preço é equivalente à soma de alguns iPhones de última geração. Pensei por alguns meses e concluí que, se fosse para me trazer a música de volta, o valor do equipamento seria maior do que qualquer coisa que um dia eu poderia comprar na vida.
Neste mês, tentei transferir para o aparelho as partituras feitas no Brasil. Por enquanto, não funcionou. Apesar de ser possível ler os textos introdutórios, os sinais musicais aparecem todos embaralhados. Tudo indica haver, grosso modo, um problema de compatibilidade entre os sinais que ficam gravados pelo software em que elas foram transcritas e o sistema usado para a leitura no dispositivo eletrônico.
Buscando uma solução técnica, encontrei reportagem que falava sobre o pianista cego chinês Hu Haipeng, que usa uma linha braille para transcrever e ler partituras. Ele possui um site com algumas músicas transcritas por ele para download gratuito. Testei a primeira, tive o mesmo problema das transcrições brasileiras. Enviei um email para o outro lado do mundo, sem acreditar que teria resposta. Em cinco minutos, recebo dele a orientação de uma configuração que precisaria alterar no computador para ler suas partituras. Funcionou. Comecei a estudar, a partir de meu novo aparelho, na última quarta (27), a Fantasia em Ré Menor, de Mozart.
Dois dias depois, chega correspondência para mim. Deixei horas de lado, sem imaginar que fosse importante. Quando abri e percebi que havia braille ali mal podia acreditar. Estavam embalados em uma manta protetora quatro livros encadernados vindos da Inglaterra, a encomenda que achávamos que se perderia no caminho.
Cada pequeno sucesso em uma busca tão improvável e que, por vezes, parece um sonho impossível, é de encher o coração de esperança. Significa que, ao contrário do que cheguei a acreditar no futuro, vou poder seguir fazendo o que mais gosto pelo resto da vida. Em poucos dias, deixei a escassez de material para trás e passei a ter até mais partituras do que tempo para estudá-las. Claro que seguirei buscando novidades, é impossível amar a música e não querer ampliar o repertório e o conhecimento infinitamente.
Mas será que um dia vou poder decidir na hora a música que desejo tocar sem ter de pensar em mil malabarismos para conseguir chegar até ela? Talvez o avanço das tecnologias para automatizar a transcrição de partituras para o braille a partir de impressões originais ou de suas matrizes digitais mudem esse cenário. Um assunto para futuras pesquisas.
As conquistas dos últimos dias foram incríveis, mas preciso lembrar que este é só o começo dessa jornada que se prolongará pela vida inteira. Afinal, ter a partitura é apenas o primeiro passo até aprender a música e poder compartilhar o resultado de todo esse esforço.