O último Carnaval

O convite para uma caminhada nas redondezas da casa dela estava cheio de segundas intenções. Eu sabia que, naquele domingo, não precisaria enxergar muito para encontrar um bloquinho desfilando nas proximidades da avenida Pompeia.

Nunca havia me juntado a uma festa de Carnaval. Jamais recebi qualquer convite para seguir atrás do trio elétrico. Provavelmente, por meu jeito certinho e introspectivo,  nenhum amigo suspeitou que, se me chamasse, certamente eu iria.

Como não tinha quem me levasse, eu próprio me tornei o guia de minha amiga, que é cega. Com ela segurando em meu cotovelo e sem saber o destino que nos esperava, fui seguindo o povo que buscava a aglomeração e o som das marchinhas.

Conforme nos aproximávamos, fingindo inocência, eu dizia que parecia estar havendo uma festa bonita, bem família, com crianças, música gostosa. Não faria mal entrarmos só um pouquinho, né? Após juras de que eu seria cuidadoso, seguimos o caminho planejado.

Antes de entrar na bagunça, passei as instruções de segurança, que mais a assustaram do que tranquilizaram. Seguraríamos a mão um do outro bem firme o tempo todo. mas caso algo desse errado e nos separássemos, deveríamos pedir que alguém nos levasse até o restaurante Souza, nosso refúgio em caso de emergência.

Parecia que eu sabia muito bem o que estava fazendo. Até, logo na partida, nos enroscarmos no cordão de isolamento do bloquinho. Uma moça chamada Amanda, disfarçada de Bruna Marquezine, enquanto seu namorado era o Neymar,  veio nos socorrer. Perguntou onde iríamos. Quando soube que a ideia era ficar por ali na confusão mesmo, sorriu e ofereceu a companhia de seu grupo. Topamos. Nossa nova amiga respondeu com um simples “Que legal”, cheio de significado.

Passamos a tarde toda junto àquela turma improvisada. Dançamos, sujamos a roupa de espuma e glíter, tomamos ali nossas primeiras Catuaba e Skol Beats da vida. Nos ofereceram petiscos mais suspeitos, que não provamos. Nos assustamos ao presenciar uma briga a poucos metros que terminou com sangue escorrendo pelo nariz de um dos exaltados. A alegria de estar sentindo da forma como podíamos aquilo que todos esperavam o ano inteiro não foi vencida nem pela lotação da rua, nem pelo empurra-empurra ou pela canseira das pernas por termos de ficar parados em meio às grandes ladeiras do bairro. Saímos do bloco já de noite, para recuperar as energias em uma pastelaria, confraternizando com nossos novos companheiros.

Nessa longa Quarta-Feira de Cinzas que virou o Carnaval de 2021, Lamentei com minha amiga o fato de não termos uma nova oportunidade para desfilar com nossas bengalas, como fizemos há três anos. Ao que ela me respondeu que não tinha intenção de repetir loucuras do tipo. Tem situações que dependem muito da visão e não vale a pena a gente se arriscar dessa forma, me explicou.

Tive de lhe dar razão. São demais os perigos dessa vida e, sem enxergar, eles crescem exponencialmente. Fiquei pensando, será que ela, que compartilhou tantas situações inusitadas para quem não vê comigo, amadureceu primeiro? E eu, será que vou tomar jeito?

A deficiência e os desafios que ela impõe para quem não se convence fácil de seus limites turva as fronteiras entre ousadia e insensatez, entre coragem e falta de juízo. Sem ver, uma saída de casa para ir até a esquina já pode ser uma travessia difícil. E isso não nos basta. Queremos conhecer novos caminhos, dar vez para o imprevisto, para a fantasia, para novos conhecidos, para a música que enfeitiça.

Quando comecei a andar sozinho pela cidade, aos 18 anos, fazia questão de passar a catraca do ônibus, em vez de ficar ao lado do motorista e descer pela frente, para sentir que também conseguiria enfrentar o que todos passavam em uma condução lotada. Já troquei hotéis confortáveis e nos quais seria muito mais fácil me virar sozinho por hostels cheios só para conhecer a experiência e ver se teria a sorte de fazer algum amigo. Andei de metrô em outros países em vez de pegar um táxi só pelo gosto de descobrir que consigo fazer isso, mesmo que pedindo muita ajuda aos demais passageiros.

A verdade é que, se eu não tivesse arriscado tantas vezes, seria mais confortável, mas inevitavelmente teria acumulado frustrações. Em vez disso, colecionei histórias de ocasiões em que passei por dificuldades, me perdi, mas, no fim, encontrei algo que buscava.

Por outro lado, a gente vai mudando com o tempo. Hoje já não faço a menor questão de me sentir como uma sardinha em lata no ônibus e, se der para chegar até onde preciso usando um aplicativo, melhor ainda. Chega uma hora em que a gente percebe que não tem mais idade para achar o máximo passar a noite ouvindo o ronco de desconhecidos em um albergue em vez de ficar em um quarto aconchegante e só seu.

Será que, para quem não enxerga, tomar juízo é preferir assistir ao desfile de Carnaval sentado em um banquinho em um camarote especial ou no sofá de casa em vez de se acotovelar no meio da multidão?

Provavelmente sim. É preciso aprender a olhar com lucidez a realidade e calcular a que estamos nos expondo para realizar cada desejo não-essencial. Com o tempo, aprendi a respeitar quem compreendeu que o mundo não foi feito para que estejamos em todas as festas que nos convida em segurança. Mas ainda é cedo para eu atingir esse grau de evolução. Em 2022, eu quero colocar o bloco na rua outra vez.