Com um ano de pandemia, sensação é de que tudo parou e nada será como antes
Apesar da entrada estreita, achar o restaurante do toldinho perto do jornal é fácil. O barulho dos talheres, das conversas e da Ana espremendo frutas para fazer sucos há um metro da porta me indica a hora de virar à direita.
Mesmo assim, por vezes estou distraído e dou um passo a mais. Não faz mal. O Maurício, dono do restaurante, costuma estar por perto da porta. Assim que me vê, já vem colocando a mão no meu ombro e me trazendo para dentro, para garantir que eu não me perca e vá parar no restaurante da concorrência. “A situação está feia, então a gente precisa pegar o cliente no laço”, brinca.
Funciona. Como não sou capaz de desapontar uma recepção tão calorosa para dizer que vou provar outros temperos, fico por lá mesmo. Tentar outro caminho para chegar ao restaurante que fica a uns dez metros dali no mesmo quarteirão me faria ter de enfrentar uma travessia de rua muito mais difícil e, como não se resolve o problema de existirem pessoas que escolhem o caminho dependendo da via que conseguem atravessar vivos, tenho de passar pela arapuca do Maurício todos os dias.
E devo dizer que sou bem tratado, a ponto de gerar inveja dos colegas de trabalho. É que, na hora do cafézinho, o meu é o único que já vem adoçado para a mesa. Nunca pedi esse mimo e nem teria dificuldades de rasgar o pacotinho e misturar a bebida, mas encaro mais o gesto como um pouco de carinho do que qualquer indicação de dúvida em relação a minha capacidade de manejar uma xícara e um palitinho sem fazer confusão.
Esta semana faz um ano que não almoço por lá. É uma entre as tantas coisas que mudaram desde que, de um dia para o outro, milhões de pessoas passaram a trabalhar em casa sem tempo para se despedir da vida que deixavam para trás. Na verdade, ninguém nem pensou que fosse preciso dizer adeus. Levou alguns meses até entendermos e aceitarmos que a pandemia não era coisa de uns poucos dias.
estou a um ano sem passar por colegas apressados na ampla Redação do jornal que me cumprimentavam sem desacelerar o passo e, quando, minha mente conseguia processar a voz e entender quem era, já estava há dois metros de distância.
Logo serão 365 dias sem ser o primeiro a chegar em uma confraternização da firma e o último a sair, às vezes com o sol já começando a brilhar no horizonte. Como se fosse pouco, nesse período não encontrei pessoalmente ninguém com quem eu trabalho, não conversei , fora trocas de mensagens rápidas e objetivas, com a maioria das pessoas que eu encontrava todos os dias.
Claro que penso que muitos estariam dispostos a um diálogo. Mas dizer o quê? que estamos cansados, perplexos com o rumo das coisas e sem saber quando isso tudo acaba? Que estamos repetindo a mesma rotina todos os dias e levando tudo como dá? Mas aí só restaria concordar e fim de papo.
Onde estará o seu Osvaldo, manobrista do jornal e que, várias vezes por semana, embarcava comigo no ônibus que nos levava até a estação Santa Cecília? Nunca mais recebi aqueles seus guardanapos em que ele anotava o nome de violonistas ou conjuntos de música cristã que ele gostava para que eu pedisse para alguém ler para mim em casa e buscar vídeos na internet. Quando havia tempo, ele me colocava dentro da guarita, de dava um fone de ouvido para escutar um hino de sua igreja ou uma música cantada pelo Andrea Bocceli sentado em sua cadeira, enquanto esperávamos a hora da condução.
Sua capacidade de falar por longo tempo sobre música virou lenda entre quem me viu ao lado dele. Descrevia nuances de sonoridade de diferentes tipos de cordas de violão, com preferência pelas de aço com som mais para o folk. Costumava me lembrar sempre, enquanto eu caminhava segurando em seu cotovelo, que, com sete notas, Dó, Ré, Mi, Fá, sol, Lá, e Sí, era possível expressar qualquer sentimento.
Já faz um ano que não entro no Metrô e, ao chegar na Santa Cecília, converso com o jovem aprendiz que me ajuda a atravessar a rua enquanto fala sobre seus planos de entrar na faculdade para se tornar delegado. É tanto tempo que até nem consigo mais lembrar seu nome. Quantas pessoas anônimas que diariamente vinham me oferecer um braço para mostrar o caminho deixei de encontrar desde março do ano passado?
Certamente eu fui dos que menos sofreram nesta história toda. Tenho de me confessar privilegiado por estudar música, e, como leitores sabem estar em um momento particularmente intenso de descobertas envolvendo musicografia braille, o que me preenche qualquer possibilidade de uma hora vazia e me faz o tempo que sobra por estar em home office serem muito bem aproveitadas. Como dizia o ex-senador e jornalista Artur da Távola (1936-2008) no programa “Quem Tem Medo de Música Clássica”, que via na adolescência, “Música é Vida Inteirior e, quem tem vida interior jamais padecerá de solidão”. Mesmo assim, não é nada fácil.
Rupturas são comuns na vida de todos. Caso não houvesse pandemia, quem sabe se eu não teria mudado de trabalho e deixado tudo isso para trás? Mas aí sentiria saudades de uma forma muito mais leve. A diferença é que saberia que a vida segue seu rumo naturalmente para os que deixei de encontrar. Não é o caso. A pandemia cria a impressão ambígua de que está tudo congelado no passado esperando para voltar, de um lado, e a certeza de que nada será como antes.
Não sei se, quando as coisas melhorarem, ainda existirá restaurante do toldinho, se o seu Osvaldo terá carros para estacionar, se o rapaz ainda terá perspectiva e ânimo para entrar na faculdade. Resta desejar vacina e um novo começo para todos que tanto me ajudaram com seus pequenos gestos e tornaram meus dias melhores.