Enfrentei anos de tratamentos sem eficácia para evitar a cegueira
Quem olha as fotos da minha viagem de formatura com os amigos de colégio, aos 17 anos, repara imediatamente em um traço típico da adolescência, a rebeldia sem causa. Com seis meses sem cortar o cabelo, eu carregava um belo ninho de passarinhos na cabeça que servia para deixar os colegas brincarem de esconder lapiseiras, borrachas e apontadores.
Mas há um detalhe sobre aquelas fotos e a pose que fazia para tirá-las que, provavelmente, passará despercebido, mas lembro bem até hoje, mesmo sem poder revê-las. Repito nelas sempre o mesmo sorriso de João bobo, aquele brinquedo para pugilistas mirins que tem um sorriso de lábios fechados, sem mostrar os dentes.
Não me faltavam motivos para sorrisos muito mais entusiasmados. Acontece que, resultado do uso de um aparelho ortodôntico que se prolongava há três anos, o encaixe dos dentes estava desajustado. Só conseguia encostar os incisivos e, ao lado deles, abria-se buracos por onde seria possível esconder mais uma série de itens dos estojos da turma.
Obviamente o tratamento não acontecia por questões estéticas. Era promovido por um dentista que vivia com a agenda lotada e se propunha a curar de asma a câncer ajustando a posição dos dentes dos pacientes. Também não tinha dúvida de que poderia devolver a visão que eu tinha perdido corrigindo o que ele dizia ser um problema na posição de minha mandíbula.
Não é fácil reproduzir em que se baseava sua teoria. A primeira consulta levou mais de duas horas. Lembro que eu e meus pais ouvimos explicações muito completas sobre ciclos de sete anos no desenvolvimento humano, os planetas do Sistema Solar, algo sobre a forma interna da boca ser uma espécie de ovo em que o homem se desenvolve, relações matemáticas entre o tamanho de diferentes partes do corpo e algo sobre dentes e amamentação. Soterrados por uma retórica poderosa que prescindia de compreensão para chegar ao convencimento, concluímos que o aparelho poderia me fazer respirar melhor e reverter a perda visual.
As consultas para ajustar o aparelho eram mensais e terminavam com uma massagem leve sobre o corpo todo. A sugestão era que eu aproveitasse para dormir. Ao final, o dentista me deixava sozinho e ia atender o próximo paciente na sala ao lado.
Alguns anos depois, quando notamos que o tratamento parecia não dar muitos resultados, mesmo que cada espinha que nascesse em meu rosto fosse explicada pelo dentista como a liberação de alguma toxina pelo meu corpo promovida pela melhora na respiração, meus pais passaram a cobrar o especialista e a ameaçar interromper as consultas. Ficava com medo da ideia. Não tanto por ainda ter fé nas promessas do dentista, mas sim porque queria que o estrago fosse consertado. Felizmente, após interrompermos o tratamento, os dentes voltaram à posição anterior e não foi preciso de novos aparelhos para reconstruir o sorriso desconjuntado.
Uma coisa que aprendi com tratamentos sem eficácia científica é que eles sempre funcionam, ao menos para quem os oferece. Se o paciente não está percebendo a melhora, a culpa é dele, por não seguir com zelo a todas as recomendações ou não saber medir os resultados.
Aos 14 anos, passei um mês internado em um hospital de Poços de Caldas onde fazia injeção diária de ozônio a partir de um soro, passava por sessões de câmara Hiperbárica e tinha uma dieta de proteínas, vegetais e muitas vitaminas.
Após o período mais intensivo, as viagens para a cidade do sul mineiro continuaram a cada 15 dias. Mas nada de eu perceber alguma diferença. Na verdade, fiz um exame oftalmológico para medir a visão e senti que tinha ido muito mal, mesmo antes de ver o resultado.
Conversando sobre isso na consulta seguinte, o médico que havia criado o tratamento, que também servia para tudo, diga-se de passagem, se mostrou incomodado por eu não estar notando os grandes avanços. Disse que eu deveria, diariamente, pegar uma folha de sulfite, marcar um ponto central, ficar olhando fixamente para ele e fazer um círculo em volta com um lápis para registrar o que enxergava com a visão periférica. Traduzindo, uma versão caseira do exame que eu já havia feito uma dezena de vezes com equipamentos preparados para isso mostraria que o médico é quem estava correto.
Quando fui parar numa especialista em autocura, que me colocou para usar um óculos tampado e cheio de furinhos para estimular a vista, fazer exercícios jogando uma bolinha de uma mão para a outra e mover o rosto sob o sol com os olhos fechados para dilatar e contrair a pupila, a moral da história foi parecida: faltou dedicação da minha parte.
Os procedimentos com eficácia questionada que fiz para tratar da minha Retinose Pigmentar começaram já aos oito anos, pouco depois de receber meu diagnóstico. Era em um hospital de Cuba. Os médicos daqui não aconselhavam a viagem —e continuam com a mesma opinião.
Lá, ao menos a promessa era mais realista. Deixavam claro que a proposta era frear a perda gradual de visão que, sabia-se desde aquela época, eu teria. Para isso, foi feita uma cirurgia na retina que prometia aumentar a vascularização dela.
Os 21 dias de internação em Havana eram aproveitados para muitos exames e novas rodadas de estimulação da circulação. Isso era feito por aparelho que, com ajuda de um algodão molhado e geladinho, dava choquinhos nos pés, na nuca e nos olhos. Eu enxergava a intensidade da corrente elétrica minha e das demais pessoas que estavam na sala pelo visor da maquininha e ficava contente quando aguentava mais do que os adultos. Também tinha injeção de ozônio, dessa vez por via retal. Eu achava bastante incômodo, mas também engraçado, porque dava bastante gases com um cheirinho muito peculiar logo na sequência.
O argumento que meus pais ouviram para decidir por essa viagem é difícil de contestar. Uma médica cubana, que não tinha ligação com o hospital em que fiquei, visitou a loja de roupas trazidas de Monte Sião (MG), que minha avó tinha na época. Ao saber da minha história, disse que minha família se arrependeria para sempre se não tentassem o tratamento. De fato, a cegueira já estava garantida em meu destino, o maior risco talvez fosse acelerar sua chegada.
Não sei se tudo isso pelo que passei contribuiu em algo para mudar o ritmo do avanço da cegueira. De fato, ele foi bem mais lento do que alguns oftalmologistas previram. Mas sabe-se que a perda visual provocada pela Retinose varia muito de pessoa para pessoa e, no meu caso, ela nunca parou.
É provável que o restinho que ainda tenho de visão se apague em breve. Eu iria atrás de algo sem evidências sólidas novamente para impedir isso? Com certeza não. E aprendi a deixar o alerta bem ligado para fraudes. Na última vez que fui em uma consulta com um desses gênios revolucionários da medicina, à contragosto, perguntei se já havia algum estudo mostrando resultados sobre a estimulação cerebral que ele fazia a partir de disparos de ondas invisíveis no ouvido. Tinha. Com quatro pessoas de uma mesma família. Espero que, com tudo o que aprendemos diariamente na pandemia, o leitor saiba que não é assim que se faz uma pesquisa.
Meu conselho, que vem de alguém que teve uma série de privilégios, inclusive o de ter tempo e recursos para desperdiçar em furadas, é que vale muito mais a pena dedicar suas energias para encontrar os recursos certos para uma vida plena sem a visão do que acreditar no primeiro que traga uma solução mirabolante. Compreendo, mas sinto muito, quando vejo inúmeras pessoas desesperadas atrás de uma salvação para a cegueira iminente, quando sei que a vida pode ser incrível sem precisar apostar todas as fichas em uma cura duvidosa.