Com menos visão, começo a esquecer de acender a luz

Não é raro alguém entrar na cozinha de casa tarde da noite, acender a luz e gritar de susto. A assombração, invariavelmente, veste uma jaqueta surrada sobre pijamas compridos, usa fones de ouvidos e mastiga sucrilhos colhidos de uma tigela com leite.

A cada dia o escuro passa a se tornar mais aconchegante para mim. Sem perceber, deixei de acender as luzes para comer, arrumar o quarto, tomar banho, trocar de roupas, trabalhar, estudar música.

Nem sempre foi assim. Minha deficiência visual, diagnosticada aos oito anos, teve como primeiro sinal uma forte redução da visão noturna. De pequeno, precisava sentar no canto mais claro da sala de aula, ler com grandes luminárias por detrás da poltrona  e até andar com uma pequena lanterna para iluminar o caderno na hora de fazer a prova de matemática. Sempre tive dificuldades com restaurantes a meia luz, barzinho, balada e saídas à noite em geral.

Com o tempo, nem fazer a lição de casa com canetinhas coloridas sob a luz do sol passou a ser suficiente para que eu soubesse o que estava escrevendo no caderno. Aos poucos fui trocando as anotações e textos no papel pela leitura informatizada, feita para mim por vozes artificiais no computador.

Mais tarde, passou a ser impossível enxergar inclusive as teclas e as letras indicadas nelas. Fui descobrindo sem muito método a posicionar meus dedos indicadores sobre as letras F e J, onde há um risquinho que pode ser sentido com eles, e os demais dedos já sabem o que fazer, mesmo de olhos fechados.

Aprender a tocar piano sem olhar  foi, e continua sendo,  mais difícil. A decisão foi tomada conscientemente, após um domingo em que passei horas tentando tocar as notas dos rápidos fragmentos de escala descendente da sonata “Waldstein”, de Beethoven. O exercício terminou com uma dor de cabeça insuportável no dia seguinte que me fez, pela primeira e única vez, sair do expediente para ir ao hospital.
Depois de muitos exames, uma noite de internação e nada de errado descoberto, a única suspeita que ficou para mim foi que eu devia ter realizado um esforço exagerado e prolongado para enxergar as teclas. Daí em diante, piano só no escuro. Nesse caso, a orientação para saber onde está a nota que devo tocar acontece usando a sensibilidade das mãos. É preciso sentir sempre onde estão as teclas pretas, mais altas que as demais, e se dedicar muito para decorar as distâncias e as posições dos braços em cada passagem.

Um pouco é treino, um pouco acontece sem a gente perceber, fato é que nosso corpo vai aprendendo a sentir de um modo diferente quando a visão diminui. Não é nenhuma habilidade especial. O que existe é uma atenção que se volta para a densidade e o peso dos alimentos na ponta do garfo e da faca na hora de cortar a comida, que percebe as mudanças de temperatura do lado de fora do copo e de seu peso quando se vai enchê-lo de água, que lembra exatamente a altura em que fica a torneira da pia da cozinha sem precisar olhar para ela.

Esse mergulho no escuro pode parecer assustador, mas, quando você se acostuma, por vezes é bastante confortável. Com frequência descansar na escuridão fica tão natural que a gente esquece que, para os outros, luz costuma ser fundamental. Deixar de acendê-la na hora de entrar em uma entrevista por Zoom é uma falha grave de etiqueta que não espero voltar a cometer. Só me dei conta de que, além de não ver os demais participantes da conversa, este repórter também não era visto, mesmo com a câmera aberta, depois de encerrada a conversa.

 

A percepção visual é algo que varia mesmo entre pessoas cegas. Enquanto algumas conseguem saber quando é dia ou noite a partir do que sentem nos olhos, outras não tem nenhuma sensação provocada pela luminosidade nos olhos. Daí alguns aplicativos para celular terem entre suas funções avisarem se o ambiente está claro ou escuro.  Convém usar para conferir se a última visita que enxergava não deixou a lâmpada da sala acesa.