Não faz sentido usar pessoa com deficiência visual para atacar linguagem neutra

É comum eu receber de amigos preocupados com inclusão perguntas sobre o que acontece quando leio um texto que adotou a linguagem neutra para evitar marcadores de gênero.

Em geral, eles querem saber o que entendo quando escrevem algo como “amigxs” ou “Todxs”.  Ou melhor, o que os softwares que fazem a leitura do texto para mim, com uma voz sintetizada e robótica dizem quando se deparam com essas inovações linguísticas.

Será que, ao tentarem ser mais inclusivos, quem escreve assim estaria deixando de fora o grupo das pessoas com deficiência visual, que passaria a se perder em uma mensagem indecifrável?

A pergunta merece reflexão, ainda mais porque pessoas com deficiência visual são com frequência citadas como grandes prejudicadas por críticos desse tipo de linguagem, como o fez o empresário Gabriel Kanner em sua coluna.

Cabe ressaltar que, ao contrário do que escreve o empresário, o sistema braile para leitura tátil não traz dificuldade alguma para registrou ou compreensão de uma letra “x” entre duas consoantes.

Na verdade, é possível escrever textos, equações matemáticas ou partituras musicais de imensa complexidade a partir do braile e uma pessoa alfabetizada entenderá o que está escrito sem diferença significativa em relação a quem enxerga.

Já os softwares leitores de tela, que não foram citados por Kanner e são uma inovação fundamental para a inclusão de pessoas com deficiência visual pelo volume imenso de informações a que dão acesso, nem sempre são perfeitos na transmissão da mensagem escrita.

Esses sistemas, que leem tudo o que aparece no monitor ou no celular e orientam a navegação do usuário entre links, pastas e abas, não sabem muito bem o que fazer quando encontram coisas como IBGE, ICMS, BNDES ou iFood, para citar termos da cobertura econômica com os quais me deparo todos os dias.

A leitura dos robôs faz o que pode para transformar esses nomes e siglas em uma palavra só em português, em vez de ler letra a letra ou passar para o idioma em que está escrito. Daí que eu tenha de estar muito atento para não decorar coisas erradas e passar a falar barbaridades como “Ibigi”, “Iquisme”, “Binidis” ou “ifud” (em vez de aifud). A assistente virtual da Amazon, Alexa (diz-se “Alecsa”), para mim foi “Alecha” por muito tempo.

Acontece que a pessoa que usa leitor de tela todos os dias sabe de suas imperfeições e, de verdade, não precisa ficar  pensando nisso o tempo todo para entender de que se está falando. Caso tenha alguma dúvida, é plenamente possível navegar pelo texto linha a linha e letra por letra para soletrar a palavra e entender o que está acontecendo.

Nosso cérebro se acostuma a fazer essas pequenas correções no texto automaticamente e em velocidade extremamente rápida. Fique do lado de um programador cego enquanto ele usa o computador para entender do que estou falando. Pensando bem, provavelmente você não entenderá uma só palavra que o leitor de tela dele dirá, tamanha a quantidade de fonemas emitidos por segundo.

Claro que é mais adequado ouvir um texto em que as palavras são bem ditas e a compreensão é mais natural. Também é de se esperar que os leitores de tela estejam sempre evoluindo e aprendendo a fazer antecipadamente os ajustes que nós realizamos na mente , conforme se amplia o dicionário de palavras e suas pronúncias armazenadas em seus arquivos. Já é comum que eles saibam que é preciso ler “spotifai” em vez de “spotifi” quando estou sobre o nome do serviço de streaming, por exemplo.

Quanto à linguagem neutra, minha opinião como ouvinte de leitor de telas é que “Amigues” e “Todes”  soam muito melhor e têm resultado parecido, só que menos esquisito, do que suas variações com “X”, apesar de manterem bastante parentesco.

Mais importante é que, nos dois casos, nenhum cego que conhece o tema vai ficar em dúvida sobre do que está se falando e toda a carga ideológica associada. Pessoas com deficiência visual estão totalmente preparadas para decidir se a enxergam como acolhedora, como um modismo irritante ou ainda uma doutrinação perversa.

Se a preocupação é com as pessoas com deficiência visual, fiquem tranquilos. Estamos participando dessa conversa e temos nossas opiniões sobre fonética e questões de gênero. Obrigado por terem se lembrado de nós e, da próxima vez que servirmos de argumento, podem perguntar primeiro, isso não nos ofende.