Mesmo quando reconhecemos limitações, deficiência não impede de continuar sonhando
Esta semana voltei a sonhar que estava no colégio, algo que é muito frequente. Desta vez, eu estava jogando futebol. A grande novidade é que recebia um lançamento pela ponta esquerda da quadra, dominava a bola com categoria, entrava na área e estufava as redes, para delírio geral da turma.
A quantidade de vezes em que marquei um gol em jogo para valer, daqueles em que cinco vira o campo e dez acaba, não devem encher duas mãos. Quando acontecia, eu virava o assunto do dia. “Vocês não acreditam, hoje teve gol do Fi”, contavam os colegas para quem não vira a façanha.
Eram três tipos de jogadores no futebol. Aqueles que eram tão bons que não poderiam jogar no mesmo time, para não desequilibrar a partida. Por isso eram os capitães, tiravam par ou ímpar e escolhiam quem jogaria do seu lado. Depois vinham os normais, que iam sendo selecionados conforme a afinidade com o líder. Por último, os que não conseguiriam fazer uma embaixadinha ou segurar uma bola jogada em direção a eles e, por isso, nenhum time poderia ter dois jogadores dessa mesma categoria, também em nome da competitividade da partida.
Eu invariavelmente estava no terceiro grupo, o que, para os meninos em seus 12 ou 13 anos, era uma posição bastante desconfortável.
Não que eu desanimasse por causa disso. Todo recreio estava na quadra, com a convicção de que o treino e o esforço me permitiriam uma promoção. Não me importava em ser por muito tempo o centro da roda no jogo de “bobinho”, em que um jogador vai passando a bola para o outro enquanto eu tentava um desarme, pois imaginava que isso seria bom para eu me aprimorar. Também era comum que alguém no tempo livre ficasse jogando a bola em minha direção para que eu tentasse agarrar com minhas mãos furadas para praticar o reflexo.
Havia também um colega que era uma espécie de técnico. Isso porque, o que lhe faltava em habilidade, esbanjava em conhecimento sobre o futebol. Poderia dizer facilmente a escalação da Hungria de 1954 ou explicar o funcionamento do carrossel holandês de vinte anos depois. O conhecimento, porém, não o impedia de conviver com alguma dificuldade para driblar um poste.
Foi ele quem, numa cena que voltou ao meu sonho 20 anos depois, me sugeriu da beira da quadra que eu invadisse a área adversária correndo o mais rápido que podia para esperar uma enfiada de bola certeira. Tal como voltei a fazer recentemente na minha imaginação, segui a orientação e finalizei com categoria para receber o abraço do time.
Satisfeito com o sucesso de sua estratégia, o técnico disse o que tinha notado. Habilidade não me faltava. Provavelmente, se enxergasse bem, eu poderia ter me tornado um ótimo jogador de futebol.
Éramos muito amigos e foi uma fala dita com admiração. Mas me apresentou uma forma nova de pensar, derrubando uma barreira de ingenuidade que protegia meus recreios. Até aquele momento, não colocava na conta dos olhos fracos, que não me ofereciam visão periférica e já possuíam acuidade limitada, a culpa por minha pouca intimidade com a bola.
Tempos depois um colega gritou comigo em uma partida por eu ter deixado o atacante adversário avançar sem marcação. Gritei de volta para ele: “Você acha que é fácil fazer isso sem enxergar bem?”. Constrangido, ele me pediu desculpas.
Ali eu já não era mais o mesmo. Um pouco por esse desencantamento, outro tanto também por ter descoberto o gosto de outras companhias, logo troquei o futebol nas aulas de educação física pelas meditações na sala de ioga com as meninas.
Descobrir que, mesmo querendo muito, a gente não vai ganhar uma medalha de ouro não é privilégio de quem tem uma deficiência, claro. E com certeza nos frustramos bem menos do que o atleta de elite que vê a medalha escorregar das mãos ao terminar em quarto lugar depois de anos de sangue e suor para reduzir alguns centésimos de seu tempo.
Mesmo assim, é inevitável que nos coloquemos um ou outro “se” de vez em quando. Será que eu seria um craque se conseguisse perceber a bola chegando perto de mim? Eu ia ser louco por games se ainda pudesse acompanhar o Sonic correndo e dando loopings na tela? Teria me tornado o terror das noites se ambientes escuros e barulhentos não fossem torturantes para mim e tivesse como enviar mensagens sutis pelo olhar? Iria gostar de carros e fazer longas viagens pela estrada sem destino? Penso que poderia aprender a fotografar, pintar um quadro, entrar em uma biblioteca e ler jornais do Século 19.
A realidade de quem tem uma deficiência é conviver sempre com certos limites no que é possível alcançar, seja porque direitos ainda nos são negados, seja porque nossa forma de sentir e estar no mundo torna algumas tarefas mais complicadas mesmo. É ler apenas o que está disponível em versão digital ou áudio, assistir aos poucos filmes que contam com recurso de audiodescrição, fazer viagens cautelosas e, no mais das vezes, ser visto como merecedor de curiosidade e admiração, raramente de desejo.
Não estou dizendo que nossa competição é em vão. Gosto do que me tornei dentro das possibilidades que me foram dadas. Penso que muitas pessoas com deficiência poderiam ir tão longe ou mais se tivessem acesso aos recursos e apoio que encontrei.
Mas as regras para que possamos jogar costumam ter algumas dificuldades que não aparecem para os demais. Mesmo assim, insistimos em estar entre os titulares e tentamos evitar repetir a desculpa de que fracassamos por causa da deficiência. Para isso, é preciso encontrar um posicionamento adequado no campo, talvez pensar em um estilo mais cadenciado, ir pelas beiradas com categoria.
Ainda há muito jogo pela frente. Posso até ser ingênuo, mas não deixarei de sonhar com grandes lances. E acredito que é desse lugar que vem a energia para qualquer conquista.