Exclusão de pessoas com deficiência na cultura não deveria ser tratada com naturalidade

Para cegos ou quem tem baixa visão, a notícia de um novo filme, série, peça de teatro ou livro sempre vem acompanhada de uma dúvida: será que foi feito para mim também?

A questão não é sobre se vai passar no streaming que a pessoa assina ou em alguma plataforma que ainda busca conquistar espaço na fatura de seu cartão de crédito. Acontece que ficamos pensando se desta vez nos será dado o direito de ter acesso ao que os demais clientes do serviço podem ver.

Experimente falar para um cego sobre algo muito bom que você assistiu recentemente. Provavelmente você vai logo ouvir algo como: “Vou pesquisar para ver se tem audiodescrição”. Esse é um recurso usado para, a partir da adição de uma locução nos momentos em que não há diálogo, informar aos espectadores com deficiência elementos fundamentais do cenário, fisionomia de personagens e ações. Em muitos casos, é o que faz a diferença entre não entender nada ao assistir um filme ou poder aproveitá-lo como qualquer pessoa.

Em uma conversa recente com uma pessoa que acabava de conhecer pela internet, fui perguntado sobre que tipo de filme eu gosto de assistir. Fiquei meio constrangido, meio com preguiça de ter de explicar que qualquer um que tenha acessibilidade estava bom. Improvisei um “sou eclético”, falei um conjunto meio sem nexo de coisas que tinha visto nos últimos meses  que ia de animações infantis a filmes policiais, e, claro, o papo não durou muito.

A gente se acostuma com isso, a poder assistir só uma parte do que passa nos cinemas, na televisão e nos palcos. E ainda por cima ficamos mais gratos quando o recurso é oferecido do que indignados com a falta dele na maioria dos casos.

Nesse contexto em que ficarmos de fora é o padrão, o resultado é que o repertório cultural das pessoas com deficiência fica defasado. Traduzindo para uma linguagem mais para Friends do que para filme iraniano na mostra de cinema, não participamos das discussões do momento. E falo de Friends, que estreou nos anos 1990, quando eu enxergava bem mais, porque não sei bem quais as séries de comédia atuais.

O questionamento sobre se fomos lembrados se repete o tempo todo. Saiu um novo aplicativo, será que foi construído de modo que um cego consegue usar? Preciso preencher um formulário online, será que os campos estão acessíveis? Gostaria de visitar um museu, será que há alguma descrição dos quadros e orientação para aproveitar a exposição? E o que pensar da quantidade cada vez maior de imagens com informações nas redes sociais que não possuem uma descrição de seu conteúdo e, portanto, não foram publicadas lembrando de nós?

O cenário ainda é bastante desfavorável, mas há evoluções. A maior delas está no acesso a livros. Próximos dias sai um novo do Chico Buarque e não tenho dúvidas de que haverá uma versão digital que poderei ler em algum aplicativo, com apoio do software leitor de tela que roda no aparelho.

Essa segurança existe nos sucessos de vendas. Já quando se precisa de um livro mais especializado, acadêmico, as chances diminuem sensivelmente. E pode ser que, ao escrever para a editora dizendo que é lei haver uma versão acessível da obra, receba apenas uma resposta sucinta dizendo que o livro só é oferecido em formato físico.

De vez em quando a gente dá um jeito de entrar pelas portas dos fundos, quando há um pouquinho de piso tátil  por lá. Consegue um amigo que esteja disponível para assistir junto a um filme e explicar o que não deu para entender só pelo som, escaneia livros página a página e tenta decifrar as letras que não foram captadas pelo aparelho, encontra na internet circulando clandestinamente uma cópia digital da obra, encontra um site com filmes sem imagens e com descrições. E nos achamos o máximo por estarmos driblando o sistema excludente, em vez de nos irritarmos por precisarmos fazer essas manobras.

Falando em coisas boas, também há iniciativas que surpreendem e enchem de esperança ao mostrar que é possível incluir mesmo que você não seja executivo de um grande estúdio ou de uma plataforma bilionária de streaming.

Minha amiga luiza gianesella lançou neste ano seu livro de estreia, entremarés.

Além da versão impressa, seus poemas estão disponíveis em áudio, na voz da própria autora, no Spotify.

Mais do que isso. Ela teve o cuidado de procurar soluções próprias para a versão falada de sua poesia que permitissem traduzir efeitos gráficos adotados na escrita. Vale trabalhar com tridimensionalidade no som, sobrepor gravações da voz falando palavras diferentes ao mesmo tempo e soletrar palavras para sublinhar sentidos múltiplos revelados pela grafia. A ideia não foi minha, mas ouvi alguns desses experimentos criativos antes do lançamento para opinar se funcionavam e já começamos a estudar ideias futuras.

Inclusão de verdade é assim, envolve respeito, dedicação e arte.